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Sonâmbulos

carlaozinho_0256_1200x600O poeta estava muito excitado. E, dado o seu posicionamento à beira do topo do edifício alto, talvez fosse mais certeiro se auto-intitular como maestro. Afinal, ele regeria a cidade inteira.

Pensando bem, talvez fosse mais certeiro ainda se auto-intitular como mago. Afinal, com um mero esforço mental, conseguira transformar toda a numerosa população daquela cidade em seus iguais.

O poeta/maestro/mago sempre fora um sonâmbulo.

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Foi como poeta que iniciou o ritual naquela noite escura e fria. Esvoaçou os braços magros contra o ar escuro e frio e entoou os primeiros versos:

  1. Os primórdios

Antes não era epidemia/era só uma tendência noturna/que tinham certos cidadãos/de comer a carne do sono/de roer o sono/até os ossos/esmagar os ossos/na moenda interior/e mesmo dormindo/se libertar do sono/primeiro/no planar dos lençóis/no vácuo do dormitório/depois/no estalar das vidraças/prosseguir/a vida/de peito aberto/paralelo/aos parapeitos/lá dentro os leitos/fora/pernas braçadas/passeio & voo

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A verdade é que o sonambulismo está aumentando no mundo todo. Segundo psiquiatras da Universidade Stanford, só nos EUA, 8,4 milhões de adultos – o que representa 3,6% da população norte-americana com mais de 18 anos – têm tendência ao sonambulismo. Especialistas falam de um aumento de 2% no número encontrado pelos mesmos autores há uma década.

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Instintivamente, o trovador do parapeito sabia disso. O que o animava a entoar a segunda estrofe de seu poema/exortação:

  1. A epidemia

Um dia descobriram/que eram tantos/os que podiam/e perceberam/como seria bom/se conhecerem/assim/em roupas de dormir/tão líquidas e leves/Num dia combinado/colocaram sob as línguas/pílulas de alarme/pra quando/chegasse a hora/Chegada a hora/as quitinetes/e os mausoléus/se abriram/ para o céu/E a multidão/se formou/sorridente e agitada/uma ciranda/orbitando//os prédios/Sobre a cidade/de concreto & sombras/uma outra cidade de carne & dança — transitou/Uma caminhada sem idade:/enferrujadas e errantes/armaduras/mordiam/pedaços de camisolas/ventando-os/como bandeirolas/de seda & nylon//Pés/ossudos &/ou pedalaram/— enlouquecendo —/Os ponteiros dos relógios//Bundas/rasparam prazerosamente/as mãos de pedra/dos anjos equilibrantes/do cimo das catedrais/(alguns/desavisados/ficavam guardados/no sótão dos sinos/enganchados/nos caninos das gárgulas)//Seios/sequiosos/acariciavam/as frias/antenas coletivas//Sexos/—/todos eles —/embaralhavam/a malha/dos para-raios/(as ondas de rádio/fazendo cosquinhas/por todo lado)//Fizeram/troca-troca/nas nuvens/— uma bolinha de gude/por/um beijo na orelha/uma carroça de roncos/por/uma calcinha/ações da Stuffwer & Stuffwer/por/uma permanente do Motel Esmeralda//Amantes/se encontraram/filhos/se desgarraram/compadres/se deram/lares desfeitos/mas felizes & doces/rarefeitos/no céu//Às vezes desciam/até quase o asfalto/para que/cadelas & lobos/felizes/lambessem-lhes/as canelas

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O estudioso Cramer Bornemann salienta que a violência no sono apresenta desafios importantes para o sistema legal. Apesar de o sistema atual reconhecer apenas a mens rea, uma mente culpada é requisito para um ato culposo – talvez a compreensão tudo-ou-nada da mente seja inapropriada. Em vez disso, a violência no sono pode ser mais bem explicada em termos de níveis de consciência, despertar, autocontrole e sono.

Um subgrupo desses andarilhos noturnos pode ser perigoso para um fenômeno preocupante e arriscado: a violência no sono. O sonambulismo agressivo na população geral gira em torno de 2%, segundo pesquisas conduzidas nos Estados Unidos e na Europa. Nem todos os sonâmbulos exibem comportamento agressivo – e o que causa essa reação ainda é um mistério –, mas identificam-se três distúrbios associados à violência no sono.

Em transtornos de sonambulismo, a pessoa opera em um estado mental que fica entre o sono e o despertar, apresentando comportamentos complexos sem consciência evidente. Em comparação, pessoas com epilepsia noturna do lobo frontal experimentam ações inadvertidamente violentas, repetitivas e breves, como correr ou chutar, que precedem uma convulsão. Um terceiro problema, o distúrbio comportamental do sono REM (sigla em inglês para “movimento rápido dos olhos”), ocorre quando os centros de movimento no tronco cerebral – que criam paralisia durante o sono profundo – se deterioram, geralmente devido a uma doença do sistema nervoso, como Parkinson. Sem essa paralisia, o corpo fica livre para se mover e agir como se estivesse no sonho, causando ferimentos acidentais tanto a quem dorme quanto à pessoa com quem divide a cama. Há alguns anos, o pesquisador Eric Olson, do Centro Mayo de Distúrbios do Sono, revisou os registros de 93 pacientes com o distúrbio comportamental do sono REM e descobriu que 64% atacaram seus cônjuges e 32% haviam se machucado durante o sono.

Como várias doenças podem estar por trás da violência no sono, investigar os incidentes é compreensivelmente difícil. O pesquisador Michael Cramer Bornemann, especialista em sono do Centro Regional de Distúrbios do Sono de Minnesota, e seus colegas do Sleep Forensics Associates já lidaram com mais de 200 casos forenses relacionados a distúrbios do sono, geralmente a pedido da lei. Desses casos, apenas os de sonambulismo foram associados a comportamentos criminosos. Ele estima que cerca de um terço das situações registradas envolve sedativos, como o Ambien, que podem aumentar o risco de transtornos de sonambulismo. Em um estado que fica entre o despertar e o adormecer, essas pessoas podem caminhar, comer, ou até dirigir enquanto dormem. Porém, mesmo sendo possível avaliar a probabilidade de alguém ter distúrbios de sono, decidir se aquele indivíduo estava acordado ou dormindo durante um incidente específico é outra história. Em 1997, Scott Falater, do estado do Arizona, esfaqueou repetidamente sua mulher e a empurrou na piscina do casal. Quando a polícia — acionada por um vizinho – chegou, Falater parecia inconsciente do que havia acontecido com sua mulher. Ele alegou estar adormecido durante o incidente.

A psicóloga Rosalind Cartwright – consultada pela defesa de Falater – escreveu um relatório do caso, fazendo um paralelo com um assassinato por sonambulismo no Canadá. Nos dois casos, o assassino não tinha motivo aparente e era conhecido por ter uma relação positiva com a vítima. Os dois homens alegaram não se lembrar do ataque. Cartwright acrescenta que essas pessoas estavam passando por intenso estresse pessoal e privação de sono na época do ataque, o que aumenta o risco de distúrbios do sono. Falater estava tomando pílulas de cafeína pela primeira vez em muitos anos. Cartwright observou que a adição desse estimulante à sua rotina diária pode ter aumentado ainda mais o risco de ter o sono interrompido. Os julgamentos, porém, tiveram resultados muito diferentes. Enquanto o caso do Canadá acabou em absolvição, os jurados ficaram céticos em relação à história de sonambulismo de Falater. Ele foi considerado culpado de homicídio e condenado à prisão perpétua.

Como Cartwright aponta no relatório, não existe teste único para diagnosticar transtornos do sono com certeza. Ela conduziu uma bateria de testes psicológicos e quatro noites de estudos antes de testemunhar que um distúrbio do sono poderia estar envolvido no caso de Falater. Mesmo assim, é praticamente impossível – e eticamente problemático — reconstruir as circunstâncias de uma dada noite ou induzir um paciente a caminhar ou falar durante o sono.

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O balouçante cantador prosseguiu:

  1. O massacre

(no ritmo do trem que o praticou)

A neblina blinda a locomotiva logo ativa se atira/trem feito um tiro treme triturante pelos trilhos/das marquises onde marca-passos dormem nos dormentes/viaja veloz e infalível faro dos faróis famintos/ferro buscando/ferro ferir no encalço e o percalço/é aço brusco varando ventres e voando vísceras/o sangue sai um jorro de fogo leque forrando farto/o céu que vira um véu suando um sol que se solta/prematuro do fuso fuçando um furo no ardente ar/até rolar na rua a ardente bola abortada de borco as brasas/instituindo o incêndio que incinera as heras/torra as torres todas e assa o dorso adormecido/de lânguidos hambúrgueres em atônitas lanchonetes

* * *

Já exausto, o mestre dos beirais encerra:

  1. O velório

(pelos despertos que nada entenderam)

Ao instalar do sol permanente o cotidiano tráfego dos pés/não percebeu porque toda a extensão da cidade/— da casa ao trampo/dos shoppings às favelas/dos becos de ecos ao racha das avenues/da ponte dos suspiros às câmeras de gás/dos estábulos das igrejas aos altares dos bordéis —/estava coberta por aquela imensa omelete ainda morna/pontilhada de gemas que em verdade eram milhões de olhos/desesperadamente abertos

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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