Uma cidade desenhada pelas crianças, um belo e urgente projeto (Foto José Pedro Martins)
Uma cidade desenhada pelas crianças, um belo e urgente projeto (Foto José Pedro Martins)

E se as crianças governassem

Um amigo me fala da dificuldade em explicar a crise brasileira, a agonia nossa de cada dia, para suas filhas. Imagino esse dilema multiplicado por milhões. Então faço a proposta: e se invertêssemos a ordem das coisas, se déssemos às crianças o governo? O bom é que já existem experiências maravilhosas assim em vários cantos do planeta e em uma cidade da Argentina em especial. A cidade é Rosário.
Mas antes de irmos a Rosário precisamos viajar a Fano, na Itália, terra de Francesco Tonucci. Ele é provavelmente o principal pensador e impulsionador da ideia de uma “Cidade das Crianças”.
Tonucci lembra que durante muito tempo a floresta, a mata, foi sinônimo de desconhecido e perigoso. A cidade, ao contrário, historicamente é o lugar seguro, de prática daquilo que o seu próprio nome aponta, a cidadania.
Mas algo mudou, diz Tonucci, com a monetização, especialização e segmentação do espaço na cidade. Aqui é para isso, ali é para aquilo. Este é para os ricos, aquele, para os pobres.
Nesse processo, lamenta, a maior perda do valor simbólico original das cidades foi para as crianças. Elas foram usurpadas do direito à cidade, se é que um dia de fato tiveram direitos nela e a ela.
Todo mundo já ouviu esta afirmação, a do desaparecimento dos “campinhos”, onde a molecada jogava futebol. Hoje o esporte se pratica em espaços exclusivos, geralmente pagos. É apenas um exemplo da segregação e condenação da infância a locais confinados.
Para mim o paraíso da infância em Itamogi era uma praça bem perto de casa e em frente ao grupo onde estudava. Praça de terra batida, onde se jogava futebol mas também queimada e muitas outras brincadeiras. E era onde ficava o circo e o parque de diversões, quando vinham à cidade. Essa praça não existe mais, foi transformada em um território cimentado, bem organizado, com bancos e jardins, mas sem aquela vibração original. O mesmo aconteceu em todas as cidades brasileiras e grande parte do mundo ocidental, com certeza.

As crianças escrevendo o destino de uma cidade, de um país, um sonho e que sonho! (Foto José Pedro Martins)
As crianças escrevendo o destino de uma cidade, de um país, um sonho e que sonho! (Foto José Pedro Martins)

A proposta de Tonucci é, então, a reconfiguração das cidades, para que elas de fato possibilitem o desenvolvimento integral das criancas. Ou seja, que as cidades pensem nas especificidades das criancas, em seus desejos, em sua enorme potencialidade.
Repensar a cidade tomando a criança como parâmetro, sintetiza Tonucci, para quem, com este eixo, esta diretriz, as cidades voltarão a ser melhores, aconchegantes, humanizadas, para todos. Uma cidade em que as criancas possam sair sozinhas de casa, como indicador do estado de sanidade dessa cidade.
Em 1991, a cidade italiana de Fano, terra Natal de Tonucci, abriu um laboratório para colocar em pratica suas ideias. Desde então, varias medidas foram tomadas, visando gerar a Cidade das Crianças. Por exemplo, a criação do Conselho das Crianças, formado por um menino e uma menina de cada escola local. O Conselho se reúne mensalmente, para apurar o ponto de vista infantil sobre vários temas.
Sob a perspectiva infantil, e com ajuda de arquitetos e artistas, foram repensados mobiliário urbano, edifícios e espaços públicos. Encontros com o prefeito, veadores e demais gestores públicos, para traduzir a visão da criança na administração pública. Encontros também com associações de moradores, de comerciantes, de pessoal da saúde, para discutir questões das crianças. E até curso para policiais, para que se tornem amigos e defensores das crianças.
Centro de educação ambiental, ampliação dos espaços verdes e áreas para brincar, o Dia sem Carros – são outras ações implementadas em Fano, dentro do propósito de “mudar a cidade”.
Desde Fano, varias cidades em diversos países buscaram implementar ações fundamentadas nas propostas de Tonucci, e uma das que mais levaram a sério a urgência de recuperar as cidades para as crianças, como pressuposto de uma vida melhor para todos, é Rosário, na Argentina. São muitos programas, projetos e ações em Rosário, direcionados para estruturar uma Cidade das Crianças.

O Jardim das Crianças, concebido como uma “máquina de imaginar”, convida a todos a passear por jogos, aventuras, mistérios construções e poesia, voltado para crianças, suas famílias e escolas. O parque foi dividido em três espaços, o das perguntas, o da invenção e o da inovação.

Na mesma linha, a Ilha dos Inventos é um território aberto para as ciências, artes e tecnologias, agrupando múltiplos desenhos, formatos, linguagens e meios. Foi instalada na antiga estação ferroviária de Rosário Central, em um projeto arquitetônico idealizado para recuperar o edifício – que ideia para tantas cidades, como Campinas, que mantêm importante patrimônio histórico ferroviário! Desde 2003 a Ilha dos Inventos é um grande centro cultural das crianças.

Uma Fazenda da Infância, aproximando ainda mais a criança da natureza; a busca de uma melhoria permanente do sistema educativo, incluindo a educação não formal e valorizando muito os espaços das bibliotecas; o Parque Infantil de Educação Viária, dentro do Parque da Independência, desenhado para propiciar a educação no trânsito e para a mobilidade urbana das crianças, por meio de recursos lúdicos e fomentando a participação ativa da infância; o Festival de Curta-Metragem para Crianças; o Festival de Pipas Pintemos o Céu de Rosário;  o Centro de Dia O Sol da Manhã, destinado a trabalhar com crianças em situação de rua; e o projeto específico e abrangente Cidade das Crianças, abrangendo Conselhos de Crianças e outras instâncias de participação infantil – são muitos os gestos em Rosário, envolvendo poder público, empresas e sociedade em geral, voltadas para a edificação de uma nova cidade, pelas e para as crianças, o que na prática significaria uma cidade melhor para todos e em sintonia com os fluxos e recursos da natureza.

Inverter a lógica. A cidade pensada por elas, com e para as crianças. A criança governando a cidade, e a partir daí o Estado, o país. Um sonho? Sim, um belo e necessário sonho.

Na Argentina e no Chile, a Fundação Arcor é uma das principais difusoras das ideias de Francesco Tonucci, e o mesmo ocorrendo em território brasileiro, com o Instituto Arcor Brasil. Maiores informações no site www.institutoarcor.org.br

 

 

 

Sobre José Pedro Soares Martins

Mineiro nascido com gosto de café e pão de queijo, ama escrever pois lhe encantam os labirintos, os segredos e o fascínio da vida traduzidos em letras.

Check Also

Rio Piracicaba em agosto de 2014: sinal de alerta em toda a região para mudanças climáticas (Foto José Pedro Martins)

História do rio Piracicaba em obra coletiva é o meu livro número 15

“Rio Piracicaba: Vida, Degradação e Renascimento”, lançado em 1998 (IQUAL Editora), é o livro número …