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Psiu! Fala baixo

CacaloFernandes_0179_400x400Durante certo tempo, foi jogador de futebol. Ele imaginava muitos aplausos da galera. Sonhava na verdade que os gritos explodiriam em um Maracanã lotado. Mas quando percebeu, depois de uma boa jogada em um campo de várzea, que o silêncio invadira o gramado, refletiu: sua carreira chegara ao fim. E agora?

Depois de uma semana dormindo, acordou com os olhos cheios de ramela e o violão nas mãos. Começou a dedilhar. Gostou. Que som bom! Será que foi a semana de dormideira? Voltou a tocar, a tocar, a tocar, a tocar. Parecia que nunca mais terminaria aquilo. Seria agora um violonista de sucesso.

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Sua nova carreira começou quietinha. Como acontecia com muita gente. Começou em bares pequenos. Mas era só o início. Que o futuro o aguardasse. O futuro seria legal. Ah, como Londres era bela! E Amsterdã, então! E Nova York, nem diga. Por enquanto tudo só estava no pensamento. Mas não custa nada, né? Era só uma viagem que, na realidade, aconteceria ainda. E aconteceu, né? Não.

Dormiu em seguida por dez dias inteiros. Acordou, tomou um banho, pegou o violão e saiu a tocar. Mas se antes a plateia era de três pessoas, agora tinha uma. Foi para a casa, pegou o colchão, a escova de dente, deu adeus para a mãe e resolveu levar a vida assim pelas cidades.

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Depois de andar e andar chegou à periferia de uma cidade que considerou muito grande. Carregava colchão às costas e escova de dente no bolso – pasta, quando precisava muito, emprestava. Achou, nessa cidade, que as pessoas o conheciam. Diziam: “olá, Dorminhoco! Como vai”? Gozado, quem era o Dorminhoco?

Já no centro da cidade, entrou na primeira casa comercial que encontrou. Viu que era uma pastelaria. Entrou para pedir uma agua da torneira e fugir. Aquela gritaria de dorminhoco já estava enchendo o saco. Ao entrar, alguém soltou o grito mais alto que ouvira: “Dorminhoco!!! A pastelaria é sua, meu amigo”. Até lá? E ele não sabia quem era o Dorminhoco, a pastelaria não era sua e ele só queria tomar uma agua da torneira. Nada mais.

Ao perceber que o visitante era um pouco arredio, o dono da pastelaria contou a história bem de mansinho. “Dorminhoco é você, você anda por aí sem parar. E dorme mais tempo do que anda. Por isso esse seu apelido no Brasil inteiro. Só se fala no Dorminhoco. Dorminhoco pra cá, Dorminhoco pra lá. Daqui a pouco, sei lá, começam a pensar que o caminho certo é desatar a dormir. Imagine? O que iria acontecer com minha pastelaria?”

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Pronto, a desgraça estava feita. A cidade gigante na qual chegara, na verdade, era a Capital do país. E ele, acho, ficara conhecido de repente. Mas ele não queria saber mais disso. Era pura praga.Voltou a dormir. Dormiu uma semana, duas, três, quatro…

Cada dia que passava, crescia a multidão que o acompanhava. Até o governador do Estado veio vê-lo. O governador pensou inclusive em verificar se ele não queria tomar um sorvete, por conta sua, ou ser candidato a prefeito de alguma cidade importante da região. Afinal, até que enfim, a cidade ganhara fama por um fulano que nascera ali – ou sei lá que lugar. Era só tirar a certidão agora mesmo e ele era natural da cidade.

Até se descuidou de seus afazeres. Eram muitos, segundo o governador, mas abrira uma exceção para acompanhar o Dorminhoco. E ficou ali aguardando seu despertar. Agradecia ao público presente toda hora. Dizia que Dorminhoco nascera ao lado de sua casa, e que sua família cuidara dele desde pequeno, como um filho.

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Mas naquela semana Dorminhoco bateu o recorde de sono. Já chegara a seis semanas. E a cada dia a plateia crescia. Os hotéis da cidade, as praças, as ruas, as igrejas.Tudo estava lotado. A notícia espalhou-se para o mundo. Vinham jornalistas de todos os cantos.

Quando atingiu a oitava semana, Constantina, secretária do prefeito, deu as caras. Constantina vestia casaco azul, apesar do calor, e usava sapato de saltos vermelhos. Eram bem altos os saltos. Trouxe até os ajudantes para a praça que carregavam a mesona do prefeito. Foi quando alguém ameaçou em tocar no braço do Dorminhoco. E a população gritou: “Não, não, não”… O sujeito desistiu. Aquele que queria acordá-lo decidiu chamar um médico. E resmungou em tom baixo: “Vai dormir assim na casa do caralho”!

Quando o homem de branco chegou para examinar suas condições, o povo voltou a gritar: “Não, não, não”…  Mas com sua autoridade de médico, que tinha um pouco de homem, um pouco de Deus, mandou o povo se calar. E tocou o Dorminhoco. Outro alguém se manifestou: “ele é um santo, doutor, um santo”!

O dorminhoco nem deu bola para o toque do doutor. Dormia que dormia. Foi uma choradeira só.

Dorminhoco virou nome de rua.

Sobre Cacalo Fernandes

Ser paulistano foi o início de uma história de quem certo dia decidiu ser um escrevinhador. Mas quando a calça deixou de ser curta, lá no início, ajudou a construir esse lado que um dia pareceu esquisito. E hoje acho que não poderia ser outro.

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