Crédito: Kasia/creativecommons.org
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Os filhos do mofo

carlaozinho_0256_400x400Eu não saberia dizer porque gostava dele, a ponto de arriscar minha vida pra salvar a dele. Apesar da fuga desesperada pelas vielas pútridas da cidade escura, o enigma subia aos ares desesperançados e se condensava feito uma nuvem densa trovejante de não respostas.

Aliás, nem saberia dizer porque o trato de “ele”: só uma precária extrapolação com base na avaliação do visual desagradável do corpo desengonçado, tão magro que deixava que algo semelhante a ossos dançasse sinistra e translucidamente sob a pele doentiamente azulada, me animava a pensar que seria masculino. O mais provável é que fosse assexuado ou hermafrodita ou o que quer que fosse.

Mais provável, mesmo, dado a forma do seu nascimento, do qual fui testemunha. “Ele” era um legítimo “filho do mofo azul”, aquela estranha manifestação que dera pra infestar cada centímetro quadrado de concreto das áreas urbanas. Os especialistas concluíram que realmente se tratava de mofo: análises microscópicas detectaram que a coisa era composta de fungos com micélio filamentoso e enramado, desembocando na forma macroscópica visível como borra.

Só que algumas constatações ainda intrigavam: a proliferação independia de matéria orgânica rica em nutrientes (brotava nas superfícies e pronto); não tinha nada a ver com o Peronospora tabacina, o outro fungo azul que infecta culturas de tabaco; e — o que mais intrigava — o código genético diferia radicalmente do predominante em todas as espécies vivas do planeta.

Isso suscitou a hipótese de que o tal mofo teria origem extraterrestre, tendo talvez chegado de “carona” na carenagem das sondas investigativas de asteroides que as agências espaciais haviam aprendido a trazer de volta ao fim das missões. Mas a ala dita mais “séria” dos cientistas apostava que o fenômeno teria origem em desequilíbrios ecológicos perpetrados pela própria humanidade.

Fosse qual fosse a resposta, a anomalia encheu os povos de medo (embora ainda não tenha sido registrado qualquer problema de saúde atribuível ao mofo).

Crédito: Surian Soosay/creativecommons.org
Crédito: Surian Soosay/creativecommons.org

O cagaço foi às alturas após as pessoas sacarem que as manchas de mofo que num primeiro estágio só impregnavam as superfícies das cidades acabavam por se mostrar “grávidas” e, em curtíssimo prazo, “pariam” bebês que se desenvolviam com velocidade estonteante.

Tanta inquietação foi o que explicou a criação e rápida expansão da chamada “Força-Tarefa de Defesa Ambiental”. Que se anuncia como órgão chancelado pela Organização Mundial de Saúde mas que entidades de vigilância social denunciam como mera milícia para-oficial e paranoica às raias da violência.

E eram justamente operativos desse grupelho que nos perseguiam nesta noite bicuda. Apesar do corpo frágil, aparentemente desprovido de músculos significantes e mal sustentado por um esqueleto certamente gelatinoso, meu amigo(a?) tentava bravamente seguir meus passos. Ofegava muito, coitado…

Aí, como se eu desfrutasse do luxo de pensar além da necessidade da fuga, tive um estalo acerca do motivo que me levava a ser tão afetivamente ligado ao ser do mofo: eu o(a) vi “nascer”!

Foi assim: contumaz boêmio, eu não era o mais temeroso cidadão frente às enfáticas campanhas contra incursões pelas ruas noturnas; perambulava, lindamente chapado, pelas vielas mergulhadas na escuridão — afinal, que empresa fornecedora de energia investiria em trechos quase nem frequentados da malha urbana à noite?

O lance foi que ouvi, — ou julguei ouvir — um frêmito vindo da mancha de mofo da parede mais próxima. Cravei os olhos: mesmo chapado, pude jurar que a coisa se estufava e murchava alternadamente, numas contrações malucas. Logo, se rompeu e derrubou aos meus pés um simulacro de bebê. Nem chorou. Agilmente, escalou a parede feito uma mosca e devorou avidamente o que restou da mancha de mofo. “Papar a placenta pra ficar fortinho”, deduzi, boquiaberto. E como ficou fortinho: em segundos, estava engatinhando pela calçada e, segundos depois, já andava ereto; ou seja, crescia numa velocidade inacreditável. Eu havia presenciado o lendário nascimento de um menino mofo!

Então era isso: eu me sentia responsável por aquele rebento do impossível e, mesmo que o bichinho se virasse muito bem devorando restos das lixeiras eu já havia me decidido inapelavelmente a adotá-lo.

Crédito: Killy Ridols/creativecommons.org
Crédito: Killy Ridols/creativecommons.org

Pena que o idílio não durou mais que 3 dias: agora, estávamos fugindo descabeladamente de um pelotão da Força-Tarefa de Defesa Ambiental, uns 8 brucutus fardados e armados com rifles municiados com cargas oxálicas, um ácido orgânico saturado, que simplesmente dissolvia os meninos mofo. Mesmo que os pobres seres nunca tivessem oferecido qualquer ameaça aos humanos, estes atiravam primeiro e não perguntavam nunca. Os malditos milicianos preferiam agir assim do que ter a trabalheira de ir dissolvendo as manchas de mofo nas paredes, que, diga-se, eram muitas. Tampouco tinham paciência pra esperar o resultado das análises bioquímicas que apontariam se os filhos do mofo representariam alguma ameaça à saúde humana ou ao meio ambiente.

Desde que me convenci de que eu e meu afilhado estávamos com os cus na reta, tratei de me preparar. Quer dizer, mais ou menos: na mochila, eu levava 2 granadas de fósforo branco e 4 coquetéis molotovs. Usei tudo quando fomos cercados pelos milicianos. Ainda bem que o pequeno arsenal deu conta de liquidar os assassinos: restava-me só uma faca de mola e uma balestra, que, sou forçado a admitir, nunca seriam cruciais numa hora crítica e que só adicionei porque seguro morreu velhinho.

Fim da batalha, eu e mofinho nos sentamos na calçada, exaustos. Mas o sossego durou pouco: ouvimos passos. Armei o canivete e a balestra, já achando de antemão que estávamos fodidos. Um grupo se aproximou, portando armas de fogo. Todos bem jovens (como eu). O que parecia ser o líder falou:

— Sossegue, ativista, não lhes faremos mal. Somos de uma entidade protetora dos meninos mofo e lhes oferecemos um Santuário onde vocês viverão em segurança. Sigam-nos.

Seguimos. Não estamos mais sozinhos neste mundo intolerante.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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