Crédito: V Dark Day/creativecommons.org
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Tiro pela culatra

carlaozinho_0256_400x400Dona Ana, de 79 anos, fincou a ponta da bengala no meio fio da calçada e, ao contrário do que seria lógico, esperou o semáforo liberar o fluxo para veículos e atravessou a movimentada avenida, fora da faixa de pedestres e em plena hora do rush, como se nem houvesse tido consciência da imprudência que lhe custou a vida: foi destroçada por uma van do transporte coletivo clandestino.

O “suicídio da anciã” ganhou rapidamente as manchetes da mídia, impulsionado pelo conhecimento prévio de que a quase octogenária andava com bengala porque fora justamente atropelada anteriormente, o que deveria ter-lhe “vacinado” contra aquele surto de porralouquice.

Segundo namorada e amigos, Zé Luiz, de 37 anos, sempre fora severamente acometido por uma rara combinação de acrofobia e agorafobia. O que não o impediu de, naquela manhã chuvosa, sair do apartamento térreo e empreender um radical parkour pelos trechos mais agitados e acidentados da cidade, mesmo sem qualquer treinamento prévio. Caiu da beira de um viaduto e agora está tetraplégico, na UTI de um hospital, ainda em estado de choque, sem conseguir falar pra lançar luz no bizarro episódio.

A professora de ensino infantil Leila, de 45 anos, era costumeiramente bullyinguinada pelos próprios aluninhos, que a assombravam com réplicas de aranhas de borracha, numa lembrança cruel da aracnofobia que infernizava a existência da frágil mestra.

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Crédito: Julian Carvajal/creativecommons.org

Pois naquele dia, ao voltar pra casa, ela fez questão de reunir a família na sala e colocou uma volumosa caixa de papelão fechada na mesa de centro. Abriu e enfiou nela as duas mãos. Marido, filhos e netos uivaram de horror ao ver que os braços dela logo se cobriram com dezenas de gigantescas aranhas armadeiras, da espécie Phoneutria nigrivente, comum na costa leste brasileira, e considerada a mais venenosa do mundo. A professora só teve tempo de murmurar “encomendei pela internet” e caiu num coma profundo.

* * *

Na abafada sala de interrogatório da Polícia Científica, o diretor do Instituto de Tratamento de Traumas Psíquicos suava como um esquimó numa sauna. O policial era implacável:

— Muito bem, doutor Euclides, já estabelecemos que os estranhos casos de temeridade suicida que não param de se suceder em nossa jurisdição acometem cobaias humanas de seu experimento, o… o…

— Decodificação Precisa de Respostas Neurológicas, ou, se preferir a sigla, DePreReNeuro. — atendeu o cientista, amedrontado, mas obviamente orgulhoso pela cria.

— Que seja. — rugiu mansa porém ameaçadoramente 0 interrogador — Então, explique que merda é essa e porque tá causando tanta bagunça.

— Primeiramente, saiba que todos foram voluntários…

— O que não ameniza a situação de caos que caiu nas nossas mã0s: ninguém aprecia atropelamentos e quedas de viadutos.

— Olha, isso nunca foi nossa intenção… talvez as cobaias iniciais tenham recebido estímulos um pouco acima do recomendável… vamos corrigir isso, pode acreditar!

— Que bom, mas não acho que haverá brecha pra porra de correção alguma.

— E temos autorização da Vigilância em Saúde para testes em humanos…

— Outra óbvia cagada. — observou o policial, e avançou:

— Agora, explique as bizarrices. Melhor: esclareça os objetivos do projeto.

— Nosso objetivo é formatar um método capaz de eliminar memórias traumáticas em cérebros humanos trocando o medo por experiências positivas.

— Sei… com química?

— Não, com escaneamento por computador e implantação de um nanochip inteligente. Por isso, apelidamos a técnica de “robô psicólogo”.

— ?

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Crédito: Krista Grinberga /creativecommons.org

— Funciona assim: primeiro, uma varredura cerebral mostra na tela do computador os padrões complexos de atividade cerebrais ligados a memórias ou sentimentos traumáticos. Que são traduzidos em algoritmos Em seguida, o nanochip é inserido no cérebro. Alimentado pelo mapa de padrões, o dispositivo vai emitindo estímulos positivos toda vez que a memória negativa seja ativada. Ao fim da terapia, os traumas deixam de existir.

— Bonito… só que parece que vocês esqueceram de regular direito a intensidade da brincadeira…

— Mas vamos encontrar as medidas adequadas! Entenda que estamos no caminho da erradicação do estresse pós-traumático!

— Entendo. Pena que tamanha boa intenção será difícil de se cumprir com os bons anos de cadeia que o senhor e sua santa e sábia equipe vão pegar, sem contar na grana grossa que deverão pagar em indenizações por danos e contas hospitalares. — encerrou o interrogador.

O suado cientista tremeu nas bases: acabara, ele próprio, de mergulhar num trauma psicológico que nenhum robozinho entusiasmado poderia tratar.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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