Crédito: Hotagrami/creativecommons.org
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Ele também cresceu

carlaozinho_0256_400x400Deu a última lambida na cria: sim, o paper estava finalmente nos conformes das exigências do 3º Congresso de Novas Abordagens na Psicologia Infantil, no qual seria apresentado, e cuja data tanto se avizinhava. Ufa! Aquilo demandara dois árduos anos de estudos e pesquisas até que tivesse o rigor pra impulsionar sua carreira acadêmica.

Na “lambida” final, focou com atenção redobrada trechos cruciais do texto que buscava lançar luz sobre o fenômeno popularmente conhecido como “amigos imaginários”, algo que se verifica geralmente com crianças entre 3 e 7 anos, porém às vezes se prolonga um pouco mais.

O paper começava por se render ao óbvio: todos nós, independentemente da idade ou status intelectual, vivemos tempos em que conversar com gente que nunca vemos não é nada incomum; perambulamos por mídias sociais e trocamos informações e segredos com pessoas com quem mantemos relacionamentos virtuais e que, na boa, nem podemos atestar que existam realmente no mudo físico.

Contudo, e quando uma criança “cria” um amigo imaginário – brinca e fala com ele, como se fosse real? Quando pais e educadores percebem a existência desses companheiros invisíveis quase sempre ficam preocupados.

Aí, entrava o argumento tranquilizador: não há motivo para preocupações. Os tais amiguinhos imaginários têm sido estudados de forma intensiva há muito tempo, nos últimos 100 anos, mas poucos psicólogos se dedicaram a esse tema. E há um ponto em comum: todos concordam que os amigos imaginários até estimulam o desenvolvimento das crianças, podem suprir eventuais lacunas afetivas e ajudam na elaboração de questões psíquicas.

16 Ele também cresceu imagem 2 Loren Kerns
Crédito: Loren Kerns/creativecommons.org

Minha pesquisa aponta que todos nós temos um parceiro imaginário em um determinado estágio do desenvolvimento – porém, ele quase nunca é descoberto pelos adultos e a própria pessoa normalmente não se lembra disso mais tarde.

Os companheiros invisíveis são frequentemente crianças da mesma idade de seus criadores.

Uma das primeiras descrições do fenômeno é um estudo publicado no século 19, em 1895, feito pela pedagoga Clara Vostrovsky, da Universidade Stanford (EUA): o caso de uma garotinha que teve vários amigos imaginários até a idade adulta. Desde então, novas abordagens mostravam que entre 20% e 30% das crianças têm, ao menos temporariamente, um ou mais acompanhantes invisíveis.

Geralmente, pais, professores e terapeutas incomodam-se não só com o fato de as amizades imaginárias serem mantidas por um longo tempo, às vezes por anos, mas também com a nitidez com que as crianças parecem ver seus “amiguinhos”.

E aí entra uma sacada de meu estudo: a criançada sabe muito bem que seus parceiros não são reais e que só existem em sua imaginação. Ou seja: essas criações psíquicas podem ser claramente diferenciadas de fantasias patológicas, que ocorrem, por exemplo, nas psicoses. A criança nunca se sente indefensavelmente dominada pelo amigo que criou – pelo contrário, pode modelar, modificar e manipular sua invenção como quiser. E também determinar a duração desse “relacionamento”.

Investigações anteriores apontaram que amigos imaginários podem ter funções variadas. Algumas crianças demonstram o fenômeno quando se sentem muito sozinhos; em 2004, um grupo de trabalho da Universidade de Oregon (EUA) constatou que 70% dos pequeninos com idades entre 5 e 6 anos que tinham amigos imaginários eram primogênitos ou filhos únicos.

O mesmo grupo de estudos mostrou que que amigos imaginários também apareciam quando surgiam mudanças drásticas: um irmãozinho nascia; um dos pais estava ausente devido a enfermidade ou depois que uma pessoa do núcleo familiar considerada referência afetiva morria. Igualmente, no caso de separação dos pais ou de amizades que se rompiam, por exemplo, devido a uma mudança de casa, os amigos imaginários ajudavam na superação.

Assim, é evidente que crianças — e até adolescentes — compensam uma realidade desconfortável com a ajuda providencial do parceiro imaginário e, com esse expediente, combatem sentimentos de abandono, solidão, perda ou rejeição. Passa a ser possível desfrutar de um relacionamento de amor e apoio, além de companhia – independentemente das circunstâncias externas. Como consequência, essas figuras quase sempre desaparecem assim que o jovem encontra amigos reais ou se adapta à nova situação.

Essa função poderia explicar ainda porque pessoas idosas têm eventualmente amigos imaginários – o que, infelizmente, até agora quase não foi muito estudado.

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Crédito: Dooley/ creativecommons.org

Certo… vamos então falar de Piaget (Jean, o psicólogo suíço. 1896/1980)? Em seus extensos estudos sobre o desenvolvimento da inteligência infantil, ele interpretou o fenômeno como uma forma especial do jogo simbólico”. Segundo Piaget, em situações lúdicas uma realidade estranha seria construída: as crianças fingem e desempenham papéis. Ele relatou sobre o companheiro imaginário de sua própria filha de 3 anos, Jacqueline. O personagem dominou a atenção da menina durante dois meses, ajudava-a em tudo o que estava aprendendo, estimulava-a a respeitar regras e a consolava quando estava triste. De súbito, desapareceu. Piaget não atribuiu a criação do amigo de sua filha à solidão ou a condições de vida difíceis. Via nele muito mais uma “prova de criatividade e prazer comunicativo”.

* * *

Já estava pra assinar o texto e imprimir um monte de cópias, quando ouviu o reboliço às suas costas. Provinha do notebook que mantinha como reserva, enquanto usava preferencialmente o desktop turbinado.

Até já desconfiava, quando fitou o sujeito corpulento que se deleitava com um jogo on-line besta qualquer e muito barulhento. Berrou pro  cara:

— Ai, ai, Lancelot! Passa o tempo e você continua sem noções de limites, né?

— Ih, geniozinho… tô te perturbando, é? Desculp’aí, não era minha intenção. De qualquer forma, bom te rever, camaradinha!

Perscrutou a aparição com rigor: é, havia crescido — até demais, pros lados, na verdade — mas ainda usava aquele short apertado, a ridícula camiseta amarela e os tênis em farrapos. Do mesmo jeito de quando ele tinha uns 8 anos e seus pais se divorciaram.

Abriu um sorriso franco e disse com doçura:

— Desencana, Lance, já terminei meu trabalho. Fique à vontade. E, bom te rever, amigo.

 

 

 

 

Campinas, jan2017

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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