Psyber Artist/creativecommons.org
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Comuna underground

 Rato de rua/Irrequieta criatura/Tribo em frenética/Proliferação/Lúbrico, libidinoso/Transeunte/Boca de estômago/Atrás do seu quinhão

— Ode aos ratos (Chico Buarque/Edu Lobo)

A inusitada delegação demonstrava muita impaciência na antessala do Gabinete de Gestão de Crise onde esperava pra ser recebida pela força-tarefa montada às pressas como tentativa de conduzir a difícil negociação. A situação era tão premente que até o prefeito de Paris estava por lá.

Finalmente, os homens da segurança sinalizaram à recepcionista que os representantes dos rebeldes podiam entrar. E eles adentraram o gabinete, agitando os longos rabos nervosamente, belicosos pelos eriçados; as patinhas diminutas chegavam a barulhar ao cruzar o suntuoso piso de madeira. Os gestores da crise engoliram em seco.

* * *

Para os parisienses, os sinais andaram se intensificando por meses, porém foi quando o The New York Times divulgou o fenômeno que o caso ganhou repercussão internacional: “Ratos correm à solta em Paris na pior crise em décadas”, berrou a manchete.

Na memória da cidade ainda latejava o fato de que cinco séculos antes roedores tinham trazido a peste bubônica através do Mediterrâneo. A chamada “peste negra” assolou a cidade, como a maior parte da Europa, matando cerca de 100 mil parisienses — entre um terço e a metade da população da época. Ela ocorreu periodicamente durante mais quatro séculos. A experiência, como era de se esperar, deixou Paris com uma aversão aos bichos que durou mil anos.

Agora, a primeira reação das autoridades foi fechar parcial ou totalmente parques e áreas verdes e iniciar um processo de “desratização”.

Embora infestações por ratos não sejam de todo novidade em Paris, dada a abundância de partes subterrâneas, a verdade é que ninguém atinava por que o transtorno estava tão agudo. Lógico que, pra aplacar a opinião pública, as autoridades recorreram ao velho bode expiatório de todos os males: a União Europeia. Pra lastrear a desculpa esfarrapada, lembravam que a EU obrigou os países membros a mudar a forma como usavam veneno para ratos. A antiga maneira de envenenar roedores envolvia um “lanche” mortal em que os funcionários dos parques colocavam iscas letais diretamente nos buracos onde os ratos viviam, ou espalhavam veneno em pó nas passagens subterrâneas usadas pelos animais. O veneno, um anticoagulante que causa desidratação, sangramento interno e morte, colava nos pelos do rato, o bicho se limpava, lambendo-se, absorvia o pó e era imediatamente envenenado.

Doc Searls/creativecommons.org
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No entanto, determinou o novo protocolo da EU, o método podia facilmente contaminar o suprimento de água, e o veneno podia ser ingerido por animais domésticos ou pessoas, com maior risco para crianças e mulheres grávidas. Agora, a UE exige que o veneno seja colocado em pequenas caixas plásticas, conhecidas como estações de isca, e os ratos têm de procurá-lo ativamente. Em Paris, porém, os ratos podem facilmente encontrar uma refeição completa na maior parte do ano bem perto de suas tocas. E eles parecem preferir uma baguete comida pela metade.

Entretanto, mais do que falhas em desculpas esfarrapadas, o que entornou o caldo foi que uma multidão de ratos se rebelou contra o processo de desratização. Emergiram aos borbotões, inteligentemente mutantes, e começaram a botar fogo na “Cidade Luz”.

O engraçado era que as emblemáticas boulevards, as vias de tráfego elegantemente amplas, resultantes do projeto de replanejamento da Paris do Segundo Império, pelo Barão Haussmann, e que, segundo as más línguas, teriam como objetivo oculto dificultar a montagem de barricadas populares (até se mostraram mais ou menos eficazes na Comuna de Paris e na revolta de maio de 1968), agora favoreciam a insurreição dos ratos: com espaço de sobra pra circular, os raivosos bichinhos tocavam o horror, invadindo restaurantes e museus, além de incendiar — sabia-se lá como — viaturas policiais. Pânico generalizado.

Não demorou pra que os revoltosos exigissem uma negociação. Com o cu na mão, as autoridades não foram loucas de recusar.

* * *

De volta ao Gabinete de Gestão de Crise. Diante da delegação dentuça, o prefeito começou balbuciando:

— Por-por que vocês estão tão alvoroçados…?

A ratazana mais graúda grunhiu, com voz de líder:

— Em primeiro lugar, porque não aceitamos mais sermos tratados como não-cidadãos. Temos direito à cidadania tanto quanto vocês. — E prosseguiu:

Denna Jones/creativecommons.org
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— Ademais, vossa ignorância é alarmante. A espécie de rato que foi responsável pela peste, o Rattus rattus, uma espécie de cor preta que chegou à Europa pela primeira vez provavelmente por volta do ano 500, não é a que aparece hoje nos parques de Paris. Nós pertencemos à espécie Rattus norvegicus, relativamente recente na Europa, que chegou da Ásia entre 150 a 200 anos. No máximo, e só se nossa rebelião se prolongar, trasmitiríamos doenças menos letais, como salmonela ou leptospirose. Portanto, não é justo que continuemos sendo exterminados em massa.

O silêncio da parte dos engomados humanos pesou como uma mola emperrada de uma arcaica ratoeira. Salvou o momento o veterinário componente da força-tarefa:

— Senhores, cientificamente sou obrigado a concordar com o argumento. O chamado “rato cinza-marrom de Paris” também é, senão o melhor amigo do homem, pelo menos um habitante constante e familiar da vida urbana: onde há homens há ratos. Estes ratos têm um papel muito útil pra nós, porque o que eles comem nós não precisamos dar um destino, por isso é muito econômico pra nós, e quando os ratos estão no subsolo eles também limpam os canos com seus pelos quando correm por eles. Por isso, precisamos mantê-los.

O prefeito e os demais notáveis da força-tarefa fizeram cara de “ué”, e o prefeito tomou a iniciativa:

— Mas, pra essa bagunça atual, o quê o senhor propõe?

— Eles só precisam topar ficar nos subterrâneos em maior número e tempo possíveis. — respondeu o veterinário.

— Desde que vocês se comprometam a suspender a matança, é algo que poderá ser viabilizado. — aquiesceu o representante dos rebeldes.

Nunca, em toda história da eternamente conflagrada Paris, um tratado de paz fora firmado tão rapidamente.

 

 

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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