Crédito: Pwjamro/creativecommons.org
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Da criação das sombras

carlaozinho_0256_400x400Ah, tá bom, tá bom, confesso que andei adiando isto aqui. Por que? Sei lá se por algum prurido idiota produzido pela carga emocional, ou porque a coisa ainda me espeta a alma caminheira em vã com uma carga poderosa de nostalgia. Ou só porque o tema é realmente muito triste. Resolva você, hipotético porém sempre generoso leitor deste nosso blog.

O que nos interessa realmente é que chegou a hora de falar DELE. E que ninguém por aí ouse rir demais: zombar de crianças que nutrem amigos imaginários é politicamente muito, mas muito mesmo incorreto, né não? (e que ninguém por aí tampouco perca de vista que este pobre escriba sessentão que lhes enche o saco semanalmente nunca deixará de ser uma… criança).

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Crédito: Lolowaro/creativecommons.org

Pois bem, chega de papo furado, vamos então à sangria, ao que parece, necessária e inevitável, do corpo/espírito de um velho escrivinhador mais perdido hoje em dia do que cachorro senil em dia de mudança): na cidade alternativa que eu habitei um dia (sei lá onde, sei lá quando, não adianta perguntar; apenas sei que a habitei e ela habitou em mim), tinha sempre um poeta cego, um cantador urbano cego, plantado nas trêmulas e murmurantes esquinas pelas quais eu passava em meus enganosos trajetos. Ele parecia adivinhar os meus passos bêbados e se teleportava para os pontos de encontro prováveis. E estava sempre com um poema na ponta da língua fantasticamente imaterial.

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Crédito: Peaches & Cream/creativecommons.org

Uma vez, naqueles tempos, o poema se chamou A lenda da criação das sombras. Pelo que me lembro, era assim:

Quando eles chegaram aqui, um dia

era um dia que nenhum outro igualaria

luz de metal que nasce — grito de água nova

ração de pão e beijo, que dá e sobra

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Crédito: Sonny Abesamis/creativecommons.org

 

Mãos vazias de moedas — os corações tão nus

eles eram belos e repletos de luz

só traziam seus sonhos, seus cães — seus vinhos

 

Mas um dia inventaram as cidades e seus caminhos

e eram tantas fábricas, tantas forjas — tantas febres

mil e tantas leis — mil deuses de brilhos breves

coroaram tantos reis, coloriram mil inúteis bandeiras

afiaram as armas — foram doar seu sangue nas fronteiras

E o aqui virou um chão tão duro e o agora ficou tão sem futuro

que eles — que já eram velhos e estavam mortos

decidiram tirar as almas de seus corpos

e as colocaram à volta — feito antenas

pra avançar entre ruínas — sobreviver apenas

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Crédito: PRONesster/creativecommons.org

 

Mas as almas rastejaram por tantas pedras duras

que ficaram loucas, tristes — sujas

 

E hoje, quando vão às guerras, às camas — às compras

eles só sabem — só conseguem— chamá-las de sombras

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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