Crédito: Renee of the Future/creativecommons.org
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Me chamaram de Deus. E fui feito refém

carlaozinho_0256_400x400Se você está lendo este relato é porque conseguiu decifrar a intrincada criptografia que apliquei e que me custou cinco meses de trabalho árduo e furtivo. Então, é sinal de que possui inteligência suficiente para entender a urgência da situação e talvez nos ajude a combater, ou ao menos, amenizar o perigo que toda a humanidade enfrenta.

Meu nome é doutor H. e respondo como pesquisador sênior do Instituto de Aperfeiçoamento de Organismos Semissintéticos, o Iaos. Quer dizer, respondia, tempos atrás; agora o quadro é bem mais complicado.

Há um semestre, nosso laboratório principal foi invadido por uma dúzia de homens fortemente armados e metidos em trajes militares que ostentam uma insígnia indicando pertencerem a alguma organização supremacista.

Demonstrando treinamento aprimorado e senso de objetivo, eliminaram, de cara, os funcionários mais subalternos, só poupando os especialistas verdadeiramente qualificados.

Logo em seguida, passaram a monitorar nossos computadores e outros meios de comunicação, tanto para impedir que enviássemos pedidos de socorro quanto para simular uma situação de “normalidade”.

A terceira medida foi manter as famílias e amigos dos sobreviventes em cativeiro, adiantando-nos que os executariam se nós não aceitássemos colaborar com os planos deles.

Crédito: Niaid/creativecommons.org
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* * *

Finalmente, fui levado ao encontro do que parecia ser o líder do grupo invasor. Antes de falar qualquer coisa, ele agitou uma das mãos no ar e, aparentemente, explodiu algumas lâmpadas do teto. Poder demonstrado, ele finalmente falou, e, surpreendentemente, num tom de voz até respeitoso, me tratou por “deus”:

— Deus, não tema, não faremos mal a você, a seus pares e familiares desnecessariamente; só estamos aqui pra garantir mais celeridade no projeto. Se aguentarem a pressão natural de nossa supervisão severa, vossas vidas serão poupadas. Além de que serão entronizados de vez em nosso panteão sagrado.

Minha reação foi a mais óbvia e medrosa possível:

— Mas… mas, o que vocês querem, afinal?

— Nada além do possível: que vocês aprimorem muitos outros humanos até o patamar do qual desfrutamos, graças a vossos notáveis esforços científicos. E que nos dotem da capacidade de transmitir essa característica genética aos nossos descentes.

* * *

Mesmo borrando os fundilhos do jaleco, pude sacar que a exigência dos terroristas tinha a ver com nosso estudo mais importante. Na verdade, com o cumprimento de um legado. Há duas décadas, nossa instituição logrou o feito de criar o primeiro organismo semissintético estável, uma bactéria que mantinha as quatro bases naturais do código genético, mas também possuía um novo par artificial. Para tanto, foi otimizada uma ferramenta chamada transportador de nucleotídeos, que transporta através da membrana celular os materiais necessários para que o par de bases não-naturais seja copiado por tempo indeterminado, numa incursão bem sucedida de edição genômica.

Apesar dos aplausos da comunidade científica, ninguém, no início, conseguia atinar com uma aplicação prática da novidade. Até que, aplicando o processo a bactérias que habitam o organismo humano sem causar danos a ele, descobriram formas magníficas de combater ou ao menos amenizar males como diabetes.

Crédito: Ondas de Ruído/creativecommons.org
Crédito: Ondas de Ruído/creativecommons.org

* * *

Pois bem: os “nossos” raptores eram egressos do primeiro grupo de voluntários que haviam sido beneficiados pela técnica. O quê não foi percebido a tempo foi que a cura acabara por conferir a uma parte dos pacientes habilidades como telecinésia, inteligência acima da média e força física extraordinária. O líder do grupo deixou bem claro que o objetivo era lançar a semente para o surgimento de uma raça de super-homens que, fatalmente, dominaria o planeta.

Só que o que exigiam extrapolava em muito a nossa permissão oficial para conduzir o experimento. Entretanto, tínhamos que rebolar: burlar o sistema legal era a única forma de impedir a eliminação de nossos familiares e amigos mantidos em cativeiro. E a nossa própria, claro.

Confesso que alimento a tênue esperança de que nossas repentinas extravagâncias acabem por chamar a atenção das autoridades em saúde. Contudo, devido à respeitabilidade que nossa instituição granjeou até recentemente, temo que tal ficha nunca vá cair.

Foi por isso que criei este código criptografado que segue camuflado nos textos dos e-mails e outras manifestações digitais da nossa instituição, todos fake, um macete dos nossos algozes para erguer uma fachada de normalidade.

Minha esperança real é de que algum de vocês decifre a criptografia, antes que seja tarde demais. Sim, isto é um pedido de socorro!

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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