Crédito: Shutterstock
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Gran Circus

carlaozinho_0256_400x400“Rrrespeitááável público!” “Mestre” Ângelo quase tinha um orgasmo quando tonitruava o bordão para a plateia magnetizada do Gran Circus Exoticus, na verdade, provavelmente o último freak show ainda circulante no mundo.

Claro que entidades de defesa dos seres excepcionais tentaram que tentaram embargar a iniciativa, porém nunca conseguiam nada, porque os próprios protagonistas depunham que eram voluntários e até recebiam salários regulares (mixaria, porém regulares). E o pior: a última reforma das leis trabalhistas perpetrada pelo governo dava respaldo àquilo, ignorando solenemente os argumentos de que se trataria de exploração indigna de humanos diferenciados; ora, se as próprias ditas vítimas não se opunham e até classificavam sua participação no elenco “exótico” como “meio de vida”, fazer-se o quê, né?

No entanto, “mestre” Ângelo já estava impaciente: seu ah… fornecedor já esperava ao volante da van na qual os protagonistas da noite seriam embarcados, após receber os honorários e tomarem um lanche rápido; seriam levados de volta ao laboratório onde realmente viviam. Como ao final de cada noite de espetáculo.

O mestre de cerimonias do Gran Circus Exoticus conferiu discretamente a lista das atrações agendadas para o show e já apresentadas: o “Superesqueleto” (ou “Rinoceronte Humano”), um portador de fibrodisplasia ossificante progressiva; simplesmente machucando de leve partes do corpo em batidas contra uma placa de madeira, o “artista” ganhava uma espécie de exoesqueleto. Seu número era romper, a cabeçadas, painéis de concreto. Confere: fez muito sucesso.

A Dama Dupla, gêmeas xifópagas completamente unidas, com duas faces, opostas uma a outra, com os rostos e os troncos unidos de frente, mas cada metade de cada rosto independente, inclusive discorrendo sobre assuntos diferentes entre si. Confere; outro frenesi de estupefação da respeitável plateia.

A Mama nas Coxas. É estimado que entre 2% e 10% da população mundial teriam mais de dois mamilos – de uma pequena saliência a seios totalmente desenvolvidos. No entanto, a “artista” em questão, recém-parturiente, conseguia alimentar o bebê em seios localizados… nas coxas. Confere; sempre fazia sucesso.

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E assim, revisou as inúmeras atrações apresentadas. Ah, sim, faltava apenas o gran finale: o “Ateador”. Era novidade, o fornecedor o havia trazido naquela manhã. “Mestre” Ângelo relembrou a propaganda feita pelo fornecedor:

— Chefia, não sei se você sabe, mas os relatos de pessoas que entram em combustão espontânea remontam ao século 15. Embora sempre tratados como lendas urbanas, a constância dos rumores tem sido tamanha que, mais recentemente, a ciência debruçou os olhos com mais cuidado e houve até quem sugerisse uma hipótese, a chamada “analogia com a vela”.

— Vela?

— É Imagine que tua gordura corporal é a cera e tuas roupas o pavio. Uma fonte de fogo qualquer – um cigarro que sumiu no meio das cinzas e passou despercebido pelos legistas, por exemplo – pode começar a queimar uma camiseta, fazendo com que o fogo chegue até a pele e a rompa, esparramando uma gordura que pode ser absorvida pelo algodão da camiseta, alimentando o fogo, que vai queimar aonde houver tecido.

— Ei, mano: você não acha mesmo que vou apresentar um cara cuja capacidade é se consumir em chamas no palco, né?

— Claro que não. Aí é que reside a diferença. Em todos os casos mais documentados, prevalece um padrão: enquanto o tronco e a cabeça ficavam completamente desfigurados pelo fogo, os pés e as mãos em geral permaneciam intactos. Aí reside o poder do nosso “Ateador”: com ele, acontece mais ou menos o contrário.

— ?

— Ele consegue emanar energia ígnia exatamente das mãos, direcionando-a em rajadas, sem que o resto do corpo fique sequer br0nzeado.

“Mestre” Ângelo ficou curioso e não se arrependeu: o “Ateador” fez uma estreia e tanto, incendiando enormes tochas a longa distância e malabarizando bolas de fogo que iam do vermelho ao azul, passando pelo amarelo.

* * *

Aliás, “Mestre” Ângelo estava cada vez mais impressionado com a capacidade de seu fornecedor de enriquecer o elenco do Gran Circus Exoticus com atrações espantosas. Não tinha a menor ideia como e de onde o “caça-talentos” descolava tantas criaturas formidáveis.

Na verdade, nem o nome completo dele o mestre de cerimônias conhecia, e o misterioso agente deixava claro que assim era de sua preferência, deixando claro que seria melhor ser tratado como “Doutor”.

Acontecia que o cara era realmente um doutor, na verdade em genética. Um dos pesquisadores mais renomados de um instituto governamental, conduzia um extenso trabalho sobre mutações, avaliando um grupo de pacientes que, por não possuírem condições financeiras, topavam na boa participar das experiências em troca de um teto e alimentação; nem nutriam grandes expectativas com relação a possíveis “curas” de suas “anormalidades”.

Um dia, cansado dos parcos rendimentos propiciados pelo governo, o “Doutor” bolou o plano: mentindo que faria parte do experimento, levou os pacientes a consumir diuturnamente um coquetel de drogas que os induzia à obediência cega e à ilusão de que o circo seria seu trabalho regular.

Em seu primeiro contato com o do Gran Circus Exoticus (que não andava lá muito bem das pernas, financeiramente), o “Doutor” fez uma exigência a “Mestre” Ângelo: que, além dos dois, somente um grupo reduzido de funcionários do freak show pudesse acompanhar as idas e vindas das “maravilhas esquisitas”. Por isso, essa seleta equipe burocrática até passou a ganhar salários razoáveis, em troca do zíper na boca (afinal, com a volta dos áureos tempos, grana já não era problema). Cada atração era arrendada pelo “Doutor” ao “Mestre” por um valor que corresponderia à expertise, mas valores sempre altos (sem crise: grana já não era mais problema…)

Crédito: Domínio público
Crédito: Domínio público

 

* * *

Numa manhã, o “Doutor” se apresentou no circo anormalmente excitado:

— “Mestre” Ângelo, meu velho, tô te trazendo a mais espantosa atração! — e apontou para o sujeito magro, enfiado num traje a rigor vintage — Ele é um autentico telepata, vai levar o público ao delírio!

Como “Mestre” Ângelo já não duvidava da eficiência do “Doutor”, o novo artista foi logo batizado de “Supermentalista” e realmente arrasou, arrancando segredos que os pobres mortais da plateia nem suspeitavam guardar. Mais prestígio para o sempre ascendente Gran Circus Exoticus.

* * *

Findo o glorioso show da noite, repetiu-se o ritual para o embarque na van: pagamento e lanchinho frugal. Após anos de atividade, ninguém se preocupava exatamente em “fazer uma chamada” para conferir se todos os “artistas” estavam a bordo; simplesmente confiavam que sim, afinal esse era um dos imperativos do coquetel de drogas. Por isso, não repararam que o “Ateador” havia se esgueirado pelos meandros do circo, mantendo-se longe das vistas de todo mundo. Enquanto fazia isso, recebeu uma piscadela cúmplice do “Supermentalista” (este, embarcou juntamente com os outros colegas). A única coisa mais ou menos suspeita foram as discretas risadinhas dadas pela renca de passageiros; como estes eram considerados “meio lesados, mesmo”, o movimento não chamou muita atenção.

Enquanto aguardava que todo o numeroso público deixasse o lugar, “Ateador” recordou o acerto que fizera — ele e os colegas do freak show — com o novo protagonista, de quem já haviam ouvido falar que se tratava de um cara com tremendos poderes mentais.

Assim que aportou no laboratório, o “Supermentalista” deu um jeito de reunir a galera longe de olhares indevidos. Começou revelando, na lata, que todos andavam agindo sob efeito de drogas potentes. Como todos aparentaram compreender muito bem o que estava falando, ele explicou:

— Só estamos nos comunicando bem agora porque nos últimos dias tenho, valendo-me das minhas capacidades mentais pra ludibriar os funcionários do laboratório, substituído as drogas do coquetel do “Doutor” por pílulas de farinha.

E aprofundou:

— Sou um infiltrado. Sou um operativo do MoLiMu, o Movimento de Libertação dos Mutantes. E tenho um plano pra que a gente possa escapar pra um refúgio que nos respeite e valorize nossas diferenças. E, de quebra, acabar com a raça de todos esses aproveitadores.

Detalhou o plano. Livre do efeito das drogas, todos toparam, depois de algumas imprecações relativas à indignidade a que estiveram submetidos.

* * *

Mocozado atrás de um grande painel cenográfico, o “Ateador” esperou até que a última pessoa da plateia deixasse o circo. Por lá ficaram somente o “Mestre” Ângelo e seus funcionários de confiança, e estes, corrompidos como eram, não mereceriam qualquer misericórdia, mesmo.

Desdobrou o bilhete que o “Supermentalista” havia lhe entregue antes do show e leu: “Aguarde até que o recinto esteja livre de inocentes. Aí, aplique seu grande número. Saia em tempo e se dirija pra (seguiam um endereço e até um mapa para orientação). Se não tivermos chegado ainda, é só dar um tempinho. Fugiremos juntos pra um lugar seguro. Boa sorte! PS: continuaremos nossa luta em todas as frentes que forem necessárias.”.

* * *

A van estava a meio caminho do laboratório. O próprio “Doutor” ao volante: afinal, não dava para confiar em muita gente numa operação daquelas. Foi quando todos a bordo notaram os rolos de fumaça subindo a partir do ponto de localização do Gran Circus Exoticus. O “Doutor” se assustou. Porém, estranhamente, os passageiros davam vivas e risadas.

O “supermentalista” emitiu um comando mental que fez o “Doutor” estacionar o veículo no acostamento.

Em seguida, o fulminou com um AVC. Os passageiros ganharam o espaço aberto, cada um com um mapa para a chegada ao ponto prometido. E uma sensação inusitada de liberdade e de vingança. Além da expectativa das lutas futuras. Para trás ficou o circo literalmente pegando fogo.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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