Crédito: FreeImages
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Alguém tem que pagar o preço da modernidade

carlaozinho_0256_1200x600Foi no boteco do bom Portuga que, confesso, conclui verdadeiramente a graduação de meu curso de comunicação social (que me perdoe a santíssima PUC-Campinas… afinal, a gente não escolhe o infernal torno que nos entortará pro mundo)

O bom Portuga resolveu aderir à modernidade: afinal, seu bar cinquentão evoluíra da “vendinha” nas cercanias do centrão para boteco fervilhante da noite. Comprou um freezer capaz de fazer frente à demanda crescente de cervejas estupidamente geladas que vinha enfrentando ultimamente. Os garçons — eram numerosos — comemoraram: já não aguentavam mais levar xingo de fregueses descontentes com a temperatura das brejas.

O técnico chegou para as medições de instalação. Foi direto à área paralela ao balcão, do lado de dentro. O Portuga corrigiu a trajetória do homem; apontando para cima, revelou que tinha um plano bem definido para a instalação do freezer: o mezanino. “Estais vendo lá? É espaçoso e bem arejado e anda a mereceire destinação mais nobre que estocar quinquilharias, ora pois!” O técnico começou a explicar que, por ser elevado, o local exigiria cabos muito extensos, com o consequente consumo elevado de energia. O Portuga, que era muito boa pessoa, mas teimoso que ele só, não quis saber: “Ora, pois, é lá e pronto!”

Crédito: Daniel Jagger Segundos/creativecommons.org
Crédito: Daniel Jagger Segundos/creativecommons.org

Como o freguês é o senhor absoluto da razão, teve início a operação freezer no mezanino. O batalhão de garçons acompanhava tudo com atenção, porém sem tanta euforia: subir e descer a escadinha no ritmo dos pedidos de cervejas seria um exercício e tanto. Mas, enfim…

Bastou a novidade entrar em funcionamento para que a advertência do técnico mostrasse sua seriedade. Conforme a noite e a madrugada iam avançando, os cabos que desciam do freezer e seguiam, subterrâneos, produziam uma fina camada de gelo sobre o piso atrás do balcão. Os garçons perceberam ao primeiro capote. Os fregueses começaram a se acotovelar no balcão pra assistir àquele curioso escorrega-escorrega. Só o bom Portuga não percebia nada. Ou não dava o braço a torcer.

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Não demorou e o show ficou ótimo. Os fregueses inventaram de apostar qual seria o próximo garçom a tombar em combate. As quedas mais espetaculares, aquelas que faziam voar garrafas e pratos das bandejas, eram aplaudidas efusivamente. Alguém começou a filmar: aquilo ia bombar no YouTube. O Portuga, quieto. Os garçons também, mas só até que um deles, talvez o recordista de tombos, não aguentou: “Ô, seu Portuga, já que o senhor resolveu transformar o bar no Holliday On Ice, podia pelo menos fornecer patins pra gente, né?”

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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