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Professor de yoga sem paciência

Cacalo FernandesTio Fernando foi um exemplar estudante de engenharia civil na Universidade de São Paulo. E desde os 14 anos já namorava tia Clio, irmã de minha mãe. Com o início do namoro, combinara com ela como queria se casar: “Para a gente ter um amor perfeito, você não poderá mais olhar para nenhum rapaz, e nem eu para nenhuma moça”. A namorada olhou nos seus olhos e disse: “Mas isto é Claro, Fernando”!

Antes de sair seu primeiro salário de engenheiro, tia Clio deu o primeiro sinal da penca de filhos que se anunciava. Depois não teria mais parada. Nascia um e já vinha outro.  O casal teve seis filhos, entre eles, uma mulher.

Foi aí que o médico falou que chegara a hora de parar. “Por que”?, questionou tio Fernando. O médico explicou, explicou, explicou… E tio Fernando manteve o semblante de dúvida. E soltava um argumento atrás do outro. Foi quando tia Clio cutucou o seu braço. Ele concordou em se calar. Mas deu sinal de que manteria a dúvida acesa.

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Enquanto a família de tio Fernando crescia e os filhos começavam a voar, estacionei pela segunda vez em São Paulo. Fui fazer o cursinho pré-vestibular na Capital paulista. Saíra da vida caipira de Campinas e fui lá parar. Iria tentar medicina.

Nesse ambiente de gente grande, que entrei em cena. Era meu dia de folga. Eu e meu tio nos encontrávamos sempre no início das tardes de domingo em que tinham jogos. Eu chegava e ele já estava pronto. Tio Fernando só aguardava eu cumprimentar tia Clio e seus seis filhos. Aí ele já estava de olho no relógio. Eu notava e ia. Era quando ele iria provar mais uma vez que ele era craque na conversa.

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E seguíamos logo para o Pacaembu. Como ele morava no Bairro de Perdizes, íamos a pé mesmo. Ele sempre falava do Palmeiras, que iria jogar no dia –aliás, só assistíamos jogos do Palmeiras, time pelo qual torcia.

No caminho, sempre que via um bar, dizia para que eu o aguardasse só um minuto, porque ele queria ir no banheiro. Eu o esperava do lado de fora. De repente, ele voltava. E continuava a falar como se nunca tivesse parado.

Aí é que eu percebia sua história, principalmente pelo cheiro que passara a exalar. E ele percebia que eu percebera. Ele explicava que a parada fora mesmo para fazer xixi. Mas, além disso, fora tomar uma cachaça. E contou que o segredo estava em como tomar a cachaça com maestria. Era preciso mastigá-la –e fazia o movimento com a boca. Eu sorria com a história.

Seguíamos a descida até o Pacaembu. De vez em quando lembrava da história da mastigação da cachaça. Ele repetia. Quando víamos o estádio, parava tudo. Agora era um momento sagrado.  Ele falava do Palmeiras de novo. Contava dos jogadores Ademir da Guia, César…

Na volta do jogo, depois da vitória palmeirense, ele era só sorrisos. E falava da origem do Palmeiras, da USP quando jovem, das aulas, do sapato que comprara, da origem do São Paulo, do mundo. Tudo novamente. Mas não parecia.

Começamos depois a reduzir nossos encontros. Os filhos das duas famílias cresceram, foram estudar e trabalhar fora de suas cidades, casaram. Mas sempre eu queria saber de tio Fernando.

Foi numa dessas vezes que tia Clio me falou de uma academia de ginástica que ele passara a frequentar nas proximidades de sua casa. E o último curso que fez foi de Yoga. Foi quando tia Clio imaginou que tio Fernando começaria a se acalmar.

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Mas não foi nada assim. A impressão é de que ele não escutara nada do que o professor indiano explicara, principalmente de que o silêncio era necessário. Em último caso, era preciso dar sinais com a mão. Ele iria até lá.

De repente, no maior silêncio, tio Fernando falava bem alto, como se estivesse falando em nome de todos os alunos. “Professor, vamos fazer isto, ou aquilo”… Todos os alunos levantavam assustados a cabeça.

Bem, embora o professor explicasse sempre a mesma coisa, a história voltou a acontecer. Uma vez, duas vezes, três vezes…E o número de alunos começou a cair. E, mais uma vez, tio Fernando grilou: “Professor”…. O indiano nem permitiu que ele seguisse a frase. Abriu a porta de saída e gritou: “Suma daqui desgraçado”!!!!

– Que cara esquisito!!!

E Tio Fernando saiu rindo.

 

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Sobre Cacalo Fernandes

Ser paulistano foi o início de uma história de quem certo dia decidiu ser um escrevinhador. Mas quando a calça deixou de ser curta, lá no início, ajudou a construir esse lado que um dia pareceu esquisito. E hoje acho que não poderia ser outro.

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