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A seita dos homens que dormem com cebolas nos pés e as dietas livres de glúten

Semana passada, quebrei meu juramento de não me meter mais em discussões pelas redes sociais, mas não resisti à tentação e, miseravelmente, tive de engolir algumas consequências que foram muito além de uma discussão e troca de ideias.

Tudo começou com uma postagem de uma página dedicada a dietas saudáveis e o poder da cura pelas plantas.

Sou fitoquímico, e meu trabalho de pesquisa envolve produtos naturais obtidos de plantas, e seu uso medicinal. Eu seria o último ser humano da face da terra a discordar que plantas produzem uma infinidade de compostos químicos usados pelas indústrias farmacêuticas.

A página postou uma receita mágica para diversas infecções e, para se livrar delas, bastaria você colocar algumas rodelas de cebolas nos pés com uma meia e, durante a noite, a cebola chuparia todas as enfermidades do seu corpo. Esse milagre, proposto pela página, foi visto por mais de dois milhões de pessoas, 2 MILHÕES! Além de milhares de comentários, a maioria deles era de relatos de pessoas que diziam terem seguido a receita e que, de fato, dormir com cebolas nos pés fizera com que elas haviam chupado o câncer delas; outros deixaram de tomar antibióticos porque as cebolas haviam curado suas infecções de urina, pneumonia e um infarto. Uma mãe dizia que parara de dar xarope de tosse para sua filha de tão benéfico que era aquilo.

Comentei ali que aquilo tudo era pura falcatrua, pois a cebola, claro, possui vitaminas e compostos antibactericidas, mas sugerir que dormir com elas amarradas nos pés permitiria que elas chupassem as mais diversas doenças era um tanto quanto perigoso e que não existia nenhuma explicação médica que dava consistência àquela maluquice.

Obviamente, choveram diversas ofensas àquilo que eu escrevera. Eram ofensas dirigidas a minha vida, e a da minha esposa. Um deles disse que minha família deveria morrer; fizeram montagens de fotos, foram muitos “cale a boca, seu merda”, “você deveria levar um tiro”, “é isso que o governo petralha faz com as pessoas”.

Ninguém, por sequer alguns minutos, estava disposto a pensar naquilo que eu falara, expliquei detalhadamente o porquê de a cebola não chupar nenhuma bactéria, mas ninguém veio perguntar nada, eram apenas ofensas e ameaças me senti sendo linchado por uma multidão raivosa.

Claro que cada um faz o que bem entender de suas vidas, e alguns dormem com cebolas nos pés, outros preferem sal rosa do Himalaia e assim a vida segue.

O fato é que estamos muito dispostos a acreditar em soluções fáceis, dietas milagrosas, sucos detox, sopas mágicas que lhe fazem perder peso em poucos dias, dietas livres de glúten, poder de cura do limão que deixa seu sangue alcalino, tudo isso é, diariamente, jogado na nossa cara, e tudo é aceito como real, verdadeiro e sagrado e, por ser imaculado, não se deve falar a respeito: “Coma merda, pois milhões de moscas não podem estar erradas”.

A página que publicou o milagre das cebolas estava cometendo algum crime? Quando você diz algo de que não existe prova alguma, de que não existe suporte médico e, quando dois milhões de pessoas tomam isso como verdadeiro, creio que é algo a se preocupar. Enganar pessoas em busca de promoção é errado mesmo sendo algo inocente.

Isso faz lembrar-me daqueles doutores que iam às casas das fazendas venderem tônicos para rejuvenescimento. Eles tinham uma lábia invejável e lhe vendiam litros desses xaropes que, no fundo, não passava de açúcar queimado.

Creio que estamos vivemos numa sociedade montada a partir de mentiras.

Algo que vem se solidificando na rotina das pessoas é a dita alimentação saudável, fitness e dietas milagrosas.

Hoje temos uma nova febre para se viver mais saudável, as dietas livres de glúten.

Clara

“Seu estilo de vida define quem você é – então porque limitar suas escolhas? Água Clara gluten-free e sobre criar escolhas para sua saúde e bem estar enquanto te dá absoluta tranquilidade de que suas escolhas de vida estão sendo respeitadas. Água Clara – porque você pode nunca estar tão seguro. (https://www.dailykos.com/stories/2015/7/10/1401047/-Great-News-Gluten-Free-WATER).

 

Pessoas que têm doença celíaca são incapazes de comer qualquer coisa que contenha glúten, é uma enfermidade terrível. Durante meus primeiros meses aqui na Inglaterra eu fui morar na casa de uma família. A filha tinha intolerância ao glúten e era desconcertante acompanhar seu dia a dia, pois ela tinha dores terríveis, e a mínima quantidade de glúten que ela ingerisse já era capaz de disparar uma série de problemas, por isso seus utensílios domésticos eram separados dos demais da casa. Ela sofria de fraqueza, falta de ferro e, por causa disso, ela não menstruava, e também seu intestino tinha danos seríssimos.

Na doença celíaca, não somente a presença do glúten na dieta causa horríveis danos ao intestino, mas também pode aumentar a probabilidade de se desenvolver certos tipos de câncer.

Para deixar as coisas piores, evitar ingerir glúten é muito difícil para essas pessoas que têm de mudar completamente sua dieta e seu estilo de vida. Cortar completamente o glúten é caro e requer muitos cuidados, planos e acompanhamentos médicos.

Acontece que, nos últimos anos, um número de pessoas não celíacas decidiu que uma dieta livre de glúten era um acessório legal e moderno para um novo estilo de vida saudável. O mito do glúten free foi criado, e uma quantidade enorme de pessoas, sem necessidade alguma, está cortando o glúten de suas vidas e interpretando isso como um caminho para uma melhor saúde.

Afinal muitas estrelas de Hollywood, com seus corpos esculturais, são adeptas dessa dieta. A febre é tanta que surgem alguns absurdos nos supermercados. Há um tempo, uma empresa de água lançou uma água glúten free, foi uma loucura geral, os adeptos fizeram de tudo para conseguir essa água livre das maldições do glúten. Acontece que tudo não passou de uma brincadeira; bastaria que as pessoas pensassem, por uns minuto, o glúten é uma proteína encontrada no trigo e não existe nenhuma razão para a água conter glúten, pois água contém… água e sais, o que esperar depois? Água livre de gordura trans?

Isso serviu como uma lição de como engolimos tudo sem sequer pensarmos a respeito.

(tee2tee Public domain) Uma poderosa arma sugadora de doenças #sqn
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Jaime e seu novo estilo de vida

Vamos imaginar uma personagem imaginária, o Jaime (que poderia ser qualquer um de nós).

Jaime é um jovem bastante preocupado com sua saúde e seu peso, e ele ouviu de várias pessoas sobre as dietas livres de glúten. Leu que se livrar do glúten era ajustar-se a uma alimentação mais saudável. Seu instrutor de academia disse que ele deveria cortar o glúten de sua dieta, e assim Jaime o fez. Ele decidiu parar de comer pães, bolos, macarrão e pizzas, fez um limpa na sua cozinha, passou a ler os rótulos de todos os novos alimentos que passou a comprar, ficou mais antenado a cada um deles, fez um estoque em sua casa de alimentos livres de glúten.

Cerca de duas semanas depois, seu instrutor perguntou a Jaime como ele estava. Ele disse que, apesar de ter gasto muito dinheiro, e algumas dores que vinha sentindo, ele podia assim dizer que estava bem, que perdera alguns quilos, estava menos inchado, e também que,  talvez, estava melhor dos gases intestinais.

O instrutor, confiante e cheio de si, disse: “tá vendo, era o glúten”.

Jaime abandonou uma dieta à base de glúten, estava se sentindo melhor, sua mente estava inclinada a aceitar que aquilo sim melhorara a sua vida. Para ele havia uma clara evidência de que o glúten estava sendo prejudicial a sua saúde.

Será mesmo que essa melhoria em sua saúde poderia ser suficiente para se chegar a tal conclusão em relação ao glúten?

Jaime fez drásticas mudanças em seu estilo de vida e alimentação, deixou de comer muitos alimentos de primeira necessidade e assim estava consumindo menos calorias o que causou sua perda de peso. Ou como ele passou também a ler mais sobre os alimentos que estava ingerindo, e isso, talvez, tenha feito que ele tomasse mais cuidado com sua dieta em geral. Ele comia muita massa e pães e, quando ele os deixou de comer, talvez, isso tenha feito que ele ficasse menos inchado e ter menos gases.

Jaime não sabia nada a respeito do glúten até então, e quando foi informado pelo seu instrutor de academia sobre os benefícios dessa dieta, ele ficou tentado a aceitar isso como uma verdade. Essa falácia foi implantada na sua mente por um bem intencionado profissional do mundo fitness. Não importa se a informação veio de alguém que não é qualificado em nutrição. Quando alguém prevê os resultados, estaremos sempre dispostos a acreditar em suas explicações.

O que Jaime fez não deve ser considerado um experimento controlado, ele sequer foi testado para ver se, realmente, sofre de alguma intolerância alimentar.

Infelizmente, nosso cérebro instintivo está sempre disposto a tirar conclusões e criar histórias simples para explicar o mundo. Veja, hoje em dia, estamos repletos de “profissionais” em medicina, direito e economia, todos graduados em memes de redes sociais: com um simples desenho e uma frase de efeito já se é capaz de explicar livre mercado e relações entre capital e sociedade.

Vamos imaginar, agora, Jaime diante de duas escolhas: a primeira delas está num profissional de saúde e dieta, que diria a ele: “olha, é complicado afirmar as mudanças observadas que você afirma ter experimentado, elas podem ter sido causadas por uma série de fatores, como mudanças, não somente na ingestão do glúten. Mas você também passou a praticar exercícios físicos, ou, quem sabe, ao cortar certos alimentos, você se livrou de alguma intolerância ainda desconhecida que você tenha”, e a outra escolha estaria num sorridente instrutor físico que diria: “Mano, foi o glúten”.

Jaime e também nosso instintivo cérebro irão acreditar, obviamente, naquilo que é mais simples e fácil de entender, mesmo que venha de alguém que não tenha nenhuma especialidade. O mesmo caso das cebolas amarradas nos pés. Em quem você acreditaria? Em milhares de testemunhos dizendo que foram curados porque dormiram com cebolas amarradas aos pés ou a este insignificante profissional, dizendo que as coisas não eram bem assim? Acreditamos, e tornamos real, naquilo que é fácil, simples e que não exige nenhum esforço para pensar a respeito. Se isso funcionou com a tia de uma prima da minha vizinha é porque funciona e eles não querem que você o saiba.

 

O estudo de caso de Jaime foi retirado do livro “The Angry Chef, bad science and the truth about healthy eating”, de Anthony Warner

 

 

Sobre André Sarria

Os certificados e papéis dizem que eu sou cientista, mas prefiro ser mais um "escutador" da natureza do que cientista. A natureza fala e eu a traduzo em linguagem de gente. Nasci em Cajobi e trabalhei em Londres como Pesquisador no Rothamsted Research. Atualmente moro em Madrid onde sou Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento em uma empresa Europeia de agricultura.

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7 comentários

  1. Ola Lola, obrigado pela sugestao. Todos os textos passam por uma correção grammatical por um profissional. É mera questão de estilo. Tanto “perca” como “perda” são substantivos adequados ao uso nesse contexto. Todos, em geral, só entendem “perda”, mas, reitero, não é erro usar “perca” neste contexto.
    Um forte abraço e novamente agradeço seu contato.

  2. Quero entender melhor esta relação entre o consumo do gluten e as dores da Fibromialgia. A maioria das pessoas aue têm Fibromialgia, relata alergias e uma delas é ao trigo. Há um bom tempo fiz um teste alérgico de contato e acusou, alergia a ovo, trigo, entre outros, mais adiante descobri também a alergia ao esmalte, porém graças a Deus estão tirando os produtos causadores de alergia. Nunca liguei muito e comia pão, bolo, biscoito, ovo , assim mesmo. Sempre e, porém, criavam feridas no canto da boca. A língua formava babados. Abaixo dos seios muitos caroços e feridas. Toda vez que como ovo, ou bolo ou pizza, a minha boca chega grudar na gengiva. Comi ovo de quintal, e parece que não me prejudicou. Parece. Quero mais esclarecimentos sobre esta relação, gluten e dores. Se possível. Tenho um canal no YouTube e falo sobre Fibromialgia, poderia me ajudar a compreender? Obrigada.

    • Cara Iracema, obrigado pelo contato.
      Infelizmente nao sou especialista em Fibromalgia e por isso nao posso te ajudar.
      Me desculpe.

  3. Muito bom André. Parabéns!
    A sociedade está tão acostumada a ser enganada pela indústria de produtos alimentícios, pela indústria farmacêutica e pela indústria política que quando encontra alguém dizendo a verdade essa sociedade não sabe o que fazer, não reconhece os parâmetros corriqueiros então a ação mais fácil é a de negação, de repúdio e ofensas.

    • Obrigado Angelica, o importante ‘e sempre ajudara s pessoas a nao serem enganadas.

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  5. Excelente matéria, André! Parabéns!