Os cachorros cercaram o carro do jornal e na entrada da casa estava Hilda Hilst, hoje a grande homaneagada da Flip 2018. Os latidos perturbaram o primeiro contato, mas a obscena senhora D. em pessoa (!) foi receptiva. Com os cabelos ruivos presos e um vestido azul solto, combinava muito bem com o tom de terra da ampla casa na chácara onde viveu boa parte da vida, em Campinas. O fotógrafo pede para ela posar, mas Hilda quer que entremos.
O ano é 1990 e essa é uma das minhas primeiras pautas no caderno de cultura do Diário do Povo, em Campinas. Hilda Hilst era praticamente só um nome para mim, então antes da entrevista procurei no arquivo antigas reportagens. Mas nada teria sido suficiente para eu me preparar para o que viria. Um dos cães, e eram muitos, um vira-lata caramelo, gostou de ficar ao meu lado e assim ficou por muito tempo, enquanto a poeta (já que ela detestava ser chamada de “poetisa”, por considerar um papel menor à mulher), começava a contar sua novidade: “O Caderno Rosa de Lori Lamby”.
Entre a máquina de escrever, papéis e livros por todos os lados, uma luz na janela que ajudava a traçar rabiscos na fumaça do seu cigarro slim (e foram muitos cigarros naquela tarde em que a conheci), confesso que enrubesci. Nos traços do Millor, Lori Lamby era uma personagem absurdamente pornográfica, a primeira de uma trilogia que seria completada por “Contos d’escárnio” e “Cartas de um sedutor”, que tem 8 anos e vive as mais intensas peripécias sexuais. Pedofilia? Aquilo era totalmente novo para mim, rapidamente folheei o livro e a primeira coisa que pensei foi: como é que vou explicar “isso” em uma reportagem?
Hilda estava entusiamadíssima com Lori Lamby, que achava que iria vender bastante e a tornar popular. Ela estava bastante irritada porque uma crítica no Rio de Janeiro havia dito que sua poesia era uma “tábua etrusca”, ou seja, que não dava para entender nada. Efusiva, direta, ela me perguntou o que achava e fui sincera ao dizer que não conhecida tanto assim sua obra, que estava chegando agora. De imediato, ela se levantou e me levou a um dos quartos enquanto pegava, um por um, seus livros anteriores. Dedicou um por um enquanto terminávamos a conversa. “Ele realmente gostou de você”, disse, quando viu o cão caramelo de novo encostado nas minhas pernas. Depois, soube que ela gostava de pessoas cultas que gostavam de cachorro.
“O Caderno Rosa de Lori Lamby” não foi um sucesso de vendas, como imaginou Hilda, que morreu em 2004 muito mais admirada do que lida. Agora, na Flip, é a terceira mulher homenageada em 16 edições da Festa Literária de Paraty, depois de Clarice Lispector, em 2005, e de Ana Cristina Cesar, em 2016. Sua redescoberta, a reedição de seus livros, o lançamento de biografias, cartas, adaptações de seus textos para o teatro, o lançamento de um documentário sobre suas tentativas de fazer contato com os mortos, e os muitos debates em torno de sua vida e obra prometem nova luz sobre a autora, que deixou 40 livros, publicados entre 1949 e 1997, sempre em pequenas edições.
O que Hilda teria achado desse auê todo? “Ela teria adorado”, garante Daniel Fuentes, que coordena o Instituto Hilda Hilst na mesma Casa do Sol. “Se viveres em mim, vereis até onde me estendo”, escreveu Hilda, que hoje é um pouco pop, com suas poesias espalhadas pelas redes sociais, até em tatuagens!, e descoberta pela nova geração, com os “hildas”, que saem pelas ruas espalhando a mensagem “Leia Hilda”. “O pessoal que picha o nome dela representa bem esse novo leitor de Hilda: jovens que estudam artes, humanidades”, diz Josélia Alves, a curadora da Flip. Para a festa, a Companhia das Letras lançou “Da poesia”, que reúne pela primeira vez sua obra poética completa, e “Da prosa”, que reúne em dois volumes toda a ficção de Hilda Hilst, incluindo “A obscena senhora D” e “O caderno rosa…”.
De volta a 1990, de volta à redação, mostrei Lori Lamby aos colegas e ao meu editor. Vamos chocar os leitores? Vamos!
Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP), em 1930, e formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Após uma temporada na Europa, passando por Grécia, Itália e França, passou a se dedicar à literatura. A estreia foi aos 20 anos de idade, com um livro de poesia, “Presságio”. Em 1966 passou a morar na Casa do Sol. Ela era casada com o escultor Dante Casarini e não teve filhos. Saiba mais sobre a autora no site do Instituto Hilda Hilst http://www.hildahilst.com.br/