Crédito: Nasa
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Face a face

Quando você olha dentro do abismo, o abismo olha dentro de você.

(Friedrich Nietzsche)

carlaozinho_0256_400x400A comandante Ethel mal conseguia conter o entusiasmo. E daí que sua vida pessoal tivesse havia muito se desintegrado ao longo de sua carreira? Ela era o primeiro ser humano a orbitar radicalmente, porém com segurança razoável, um buraco negro, com chances reais de obter imagens com altíssima resolução do que rolava “lá dentro”. O macete era manter a nave só um tiquinho aquém do horizonte de eventos de Sagittarius A*, o buraco negro monstruoso no centro da Via Láctea.

Orbitalmente ancorada ali, ela poderia operar a otimização do sistema observacional e realizar o grande feito, nunca alcançado pela humanidade (e, provavelmente, nem por qualquer outra espécie). Passaram-se boas décadas desde que cientistas obtiveram a primeira imagem real do buraco negro. Na época, eles construíram um “telescópio virtual” do tamanho da Terra ao ligar transmissores de rádio a partir de Boston (EUA) para pontos no Polo Sul, no Havaí, nas Américas e na Europa. Telescópio de Horizonte de Eventos foi o nome da iniciativa. A técnica, chamada Interferometria de Longa Linha de Base, combinava uma rede bastante ampla de radiotelescópios de vários pontos da Terra criando um telescópio virtual gigante.

A uma distância de 26 mil anos-luz da Terra, Sagittarius A* é apenas um minúsculo ponto no céu e nunca havia, então, sido diretamente observado, sua existência era presumida devido ao movimento de estrelas próximas. É que elas se movimentam em torno de um ponto no espaço a uma velocidade de milhares de quilômetros por segundo, sugerindo que o buraco negro tivesse uma massa quatro milhões de vezes a do Sol.

Crédito: Darron Birgenheier/creativecommons.org
Crédito: Darron Birgenheier/creativecommons.org

Porém, por mais gigante que parecesse ser, o horizonte de eventos (a borda do buraco onde a força gravitacional é tão forte que nem a luz consegue escapar) não tem mais que 20 milhões de quilômetros de diâmetro.

A iniciativa chegou a uma precisão de 50 micro-arco-segundos, o que significou que o multitelescópio conseguia capturar o equivalente à imagem de uma laranja na superfície da Lua vista da Terra.

Entretanto, tal avanço já era passado para Ethel e seus coordenadores, que viviam a época áurea das naves capazes de saltos pelo hiperespaço e complementavam o percurso com auxílio de velas de vento solar. Conduzindo por uma nave daquelas, o telescópio final da imensa corrente que começava lá atrás, a milhares de anos luz, estava prestes a registrar mais do que uma “laranja”: seria o laranjal inteiro e até arredores.

* * *

E a comandante Ethel estava prestes a realizar o grande feito. Contudo, deixou-se questionar: por que, cargas cósmicas, antes do admirável triunfo, havia pouco se deixara questionar sobre o sepultamento radical de sua vida pessoal, tão insignificante frente os desafios para os quais se preparara tanto?

Bem, certamente o comportamento, manifestado enquanto ela imprimia os preparativos para aquela fase crucial da missão, se devera, em grande parte, pela visão periférica que obtinha dos hologramas dos descansos de telas que pipocavam nos inúmeros equipamentos ópticos que não estavam em uso no momento. Não que as imagens fossem desagradáveis, ao contrário: recordavam momentos gloriosos da carreira de Ethel, cobrindo de sua passagem pela academia a momentos memoráveis de missões anteriores. A questão foi que, subitamente, as percebeu como extremamente áridas.

A tradição de hologramas como companheiros de viagens era comum aos pilotos, até incentivada pelas autoridades como reforço emocional em momentos críticos. A questão era que na maioria dos casos, os holos remetiam a recordações das vidas pessoais, cônjuges, filhos, bichos de estimação e férias com direito a regalos como cruzeiros em ônibus espaciais.

No caso da nave de Ethel, o mosaico de imagens abundava poses heroicas, cerimônias de congratulações, escavações em asteroides etc. Nenhuma, porém, de Rod.

Aí, foi inevitável a avalanche na memória. Visualizou, como se fosse agora, o cadete Rodolpho, com quem estudara na Academia de Pilotos, o belo Rodolpho, com quem namorara e chegaram a planejar uma família, projeto que ela abortou sem dó, em prol da carreira. Sacrifício ao qual não quiseram se submeter outros pilotos, não tão bem exitosos como ela, porém que teimavam em conciliar a vida profissional com a pessoal.

Antes de se render ao choro e comprometer a missão, a bem treinada Ethel, já em seus 50 anos de idade, agiu: ativou o início da operação do telescópio que sua nave comportava, e que era o último estágio da extensa corrente iniciada lá atrás, no espaço e no tempo. Hora de trabalhar, porra! Chorasse o leite derramado depois…

Crédito: Tonynetone/creativecommons.org
Crédito: Tonynetone/creativecommons.org

* * *

Recomposta já, Ethel se surpreendeu com a primeira visualização otimizada do cenário: o buraco não era exatamente negro, como sempre rezou a crença. O que observou foi uma névoa cinzenta clara… lógico que poderia estar captando resíduos de gás fluindo no entorno do buraco.

Segunda impressão: nem “buraco”, exatamente era: assemelhava-se mais a uma depressão numa estrada predominante plana.

Contudo, veio a terceira surpresa: não visualizava qualquer área habitável, porém chamou sua atenção um brilho metálico se aproximando rapidamente.

O susto aumentou quando constatou que se tratava de uma nave, vindo em sentido contrário. Imagine, então quando o artefato se tornou razoavelmente distinguível: era uma nave exatamente idêntica à que pilotava.

A estupefação só fazia crescer quando se evidenciou que os dois artefatos poderiam colidir. Pior: Ethel chegou a temer que, por culpa de suas digressões, tivesse errado alguns comandos e simplesmente ultrapassado o horizonte de eventos. Mas, não: se fosse esse o caso, seus átomos seriam esmagados por uma absurda força gravitacional, seria engolida, sem chances de retorno; essa lição de casa ela fizera…

Só sossegou o facho quando as naves gêmeas se embicaram e o que deveria ser uma colisão catastrófica se mostrou como uma interpenetração de aspecto fantasmagórico: Ethel chegou a ficar “lado a lado” com uma sósia sua, apenas mais cheinha de corpo.

Por instinto, “Ethel 1” cravou os olhos nos descansos de telas dos instrumentos da nave de sua clone cósmica. E lá estavam imagens de “família”, filhos, netos, cachorro e… um sorridente Rod! A “outra” Ethel também expressava espanto pelo encontrão inesperado.

O fenômeno durou poucos segundos. Quando a normalidade voltou, “Ethel 1” começou a dar tratos à bola sobre como o relataria ao comando da missão (constatou que, por quanto durou a ocorrência, nenhuma imagem dele havia sido registrada).

Chorou sem freios enquanto tentava ordenar o enigma.

Crédito: Nasa
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Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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