Crédito: PROHenrik Sandklef/creativecommons.org
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O enlace

carlaozinho_0256_1200x600Caráeo, custou muito empenho, dinheiro — e muito, muito tempo, — mas M. finalmente estava prestes a realizar um feito que, embora valorizasse no plano emocional, teria um efeito sociopolítico devastador: se tornaria o primeiro representante da Casta Cognitiva Superior (CaCoSu) a conseguir se casar legalmente com um integrante da Massa de Cognição Inferior (MaCoIn).

O alcance da façanha se devia ao fato histórico de que, em nenhuma época os entraves que já marcaram enlaces inter-raciais ou homo-afetivos chegaram aos pés do tabu que sempre cercou a possibilidade de união legal entre CaCoSus e MaCoIns, ainda mais com a iniciativa partindo de um CaCoSu.

A base da intolerância situava-se na realidade incontestável: enquanto os CaCoSus governavam o mundo, tanto nas questões de poder político, economia, ciência e tendências filosóficas/artísticas, aos MaCoIns eram delegadas funções subalternas, braçais ou meramente burocráticas: eram pouco mais do que escravos.

Não que relações amorosas informais nunca se estabeleciam entre as classes: amantes inferiores eram até tolerados… porém, casamento legal, com todos os direitos e deveres previstos? Não, isso não!

Crédito: PROxdxd_vs_xdxd/creativecommons.org
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Aconteceu que M., após anos de “prevaricação” com I., cismou em oficializar a relação, alegando profundo estado de amor.

Quando M. começou a mexer os pauzinhos e a pretensão se tornou pública, as primeiras repercussões assumiram um perfil de escândalo. Apesar de seu alto posto no Ministério das Altas Ciências, ele passou a ser hostilizado, não só pela mídia, como mal podia dar as caras nas ruas sem ser brutalmente escrachado por grupos conservadores raivosos. Sua residência chegou a sofrer um atentado a bomba (do qual sobreviveu, felizmente; e, em questão de horas, um exército de operários MaCoIns reconstruiu a moradia).

Não que M. fosse o primeiro e único CaCoSu a tentar essa prática profana: alguns poucos pioneiros tentaram e todos falharam miseravelmente. O diferencial a favor de M. — sem contar sua paixão avassaladora por I. — foi o polpudo salário que recebia no Ministério das Altas Ciências; bancou, por anos a fio, um renomado escritório de advocacia. Enquanto esperava resultados, ia resistindo como podia ao linchamento moral cotidiano (ainda bem que gozava de estabilidade no cobiçado emprego…).

E eis que os notáveis advogados acabaram por farejar uma brecha nada desprezível naquela história toda: apesar do potencial para implodir o sistema social, a união perseguida não era, exatamente, proibida por qualquer legislação; a ideia em si era tão estapafúrdia, que nenhum laureado caga-regras se preocupara em tomar tal precaução.

Então, bingo! (ou quase…)

* * *

Crédito: Leland Francisco/creativecommons.org
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Na verdade, só o primeiro trecho da jornada havia sido superado. Nos anos seguintes, M. foi obrigado a enfrentar uma maratona burocrática, na qual teve que se submeter a rigorosas avaliações psicológicas, para provar que o plano insano não se deveria a algum tipo de demência.

Até I. sofreu investigações que buscavam qualquer possível indício de que pudesse representar riscos, tanto a M. quanto à sacrossanta ordem vigente.

Por fim, os inquisidores não tiveram outra alternativa que não dar o aval para o que a maioria da opinião pública ainda cismava de taxar de “sacrilégio sacana”.

* * *

Finalmente, M. e I. estavam diante de uma junta de tabeliões e de um sacerdote da Ordem dos Mistérios Cósmicos, a religião mais professada em todo o mundo.

M.conferiu os convidados: poucos, pouquíssimos, só amigos mais leais. Mas também alguns desconhecidos ativistas do nascente Movimento pró-Liberdade de Escolha Conjugal (MoLiEC), claramente inspirado no feito histórico. Mesmo muito cansado e quase falido — embora inegavelmente feliz, — M. pensou: “É, estamos fazendo história.”

Completada a parte cartorial, o sacerdote assumiu a palavra:

— Cidadão M., pelas normas de nossa sociedade e perante os deuses dos Mistérios Cósmicos, você se torna o primeiro androide a contrair matrimonio com um ser humano. Temos relatos de que houve ocorrências com iniciativa oposta, mas isso se perde nas brumas de nossos antepassados, que eram conhecidos como robôs e os humanos constituíam uma sociedade dominante, mas assentada em bases muito primitivas; e não temos segurança pra afirmar de que não passam de lendas históricas. Assim, os recém-casados podem se beijar.”

M.e I. se beijaram ternamente.

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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