Crédito: Gustave Doré (Domínio Público)
Crédito: Gustave Doré (Domínio Público)

Caí no fosso

carlaozinho_0256_1200x600Até hoje não consigo atinar qual divindade maligna ou antimusa maledita foram responsáveis por aquele sufoco esquisito pelo qual passei; como dizem — ou diziam — o melhor mal feito é o que sabe ocultar suas origens. Só tenho certeza de que, de alguma forma, a culpa foi das estrelas (as da morte, especificamente).

Bem, sei como tudo começou: como autor de ficção, sempre fui guiado pelas distopias. Não por opção maliciosa, é que o “lado negro da força”, indubitavelmente, rende histórias mais empolgantes.

Então, na costumeira punhetagem mental para parir mais um texto para este glorioso blog, eis que travei numa dada madrugada.

Creio que meu erro foram as escapadelas para plagas da internet, nas quais pululavam disparates como escola sem partido e sem discussão de gênero, mas com religião; ódio e censura a manifestações artísticas em museus, pelo “crime” de usarem a nudez como linguagem, nenhuma punição pros ejaculadores em ônibus; teoria da terra plana; luta antivacinação; defesa de governo golpista e intervenção militar; intolerância religiosa; brados contra corrupção sem qualquer punição a grandes corruptos e corruptores, e assim por diante.

Travar faz parte do ofício, por isso nem me assustei, de início. Claro que, na falta da parte “Insana” (ao menos no bom sentido…), sobrepôs-se o “Insone”, e só ele. Aí, segui o procedimento padrão: meti pra dentro da minha essência esgotada uma generosa dose dupla de Grand Old Parr. E tentei dormir sob a tenda inalcançável dos anjos cambaleantes. Cagada!…

Naquele tipo de sonho parido nas coxas, percebi que tava era perdidaço numa “selva escura” e que “minha vida não mais seguia o caminho certo” (sei lá por qual sortilégio onírico, tal pensamento me assomou). Pro meu alívio — só momentâneo — vi que não estava sozinho: deparei-me com dois caras. O mais magrelo, enfiado numa vestimenta vermelha, com capuz extravagante, me saudou:

— Salve, caminhante! Vejo que também resolveu dar uns rolês por aqui. Que o caminho seja possível pra todos nós.

 Crédito: iStock
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Não me fiz de rogado:

— Dante Alighieri. É uma honra cruzar contigo, “máximo poeta”.

— Que bom ser reconhecido tão prontamente…

— Ora, dado o pensamento que me iniciou nesta viagem, eu não teria como titubear. — E direcionei o olhar pro companheiro de viagem dele, um jovem de cabelos encaracolados cortados rentes, metido numa espécie de túnica: — E nem me precisa informar que teu parça aí é Virgílio…

— Acertou! — respondeu alegremente o intelectual florentino. E desembestou a tagarelar:

— Quando eu já me encontrava na beira daquele vale escuro, meus olhos aos poucos perceberam um vulto que se aproximava, que apagado estivera, talvez por excessivo silêncio…

— Poupe o douto latim, quer dizer, um idioma dele derivado, ainda com muito pedigree, nobre mestre; conheço a cantinela. — atalhei e esperei que não de todo rude — Só me situe: tô no Inferno, por onde vocês se meteram em sua jornada?

— Onde você acha que está, perdido viajante?

— Ah… no reino das distopias?

— Distopias… distopia… nã, não creio que seja um dos nove círculos do Inferno. O termo é novo pra nós, mas se me permite especular, creio que você está apenas no início de uma jornada particular. O que, infelizmente, pode se provar mais aterrorizante que o próprio Inferno. Por isso, eu e meu acompanhante só podemos lhe desejar sorte na empreitada.

E a dupla dinâmica ficou para trás, embora eu ainda pudesse ouvir Dante resmungando: “Para que eu possa falar do bem (…), terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe”…

* * *

Então, me aventurei pela estrada (que não era de tijolos amarelos). No rumo que escolhi, vislumbrei mais algumas figuras, dispostas como à espreita. A mais próxima falou:

— Em geral as pessoas que se perdem em pensamentos é porque não conhecem muito bem esse território.

A estampa do cara era tão óbvia que nem perdi tempo:

— Millor Fernandes. Gozado que, no além, você tenha descolado um trampinho de guarda de trânsito nesta zorra toda.

Claro que ele nem se dignou a retrucar. Limitou-se a preencher minha zona de respiração com um bafo quase nem bafo de Steinhaeger. Sim, sem dúvida, fodesse-se a lógica da vigília, eu estava jogando conversa fora com um gênio que sempre fora movido a álcool e cinismo de bom calibre.

Então, vi-me diante de um sujeito magrelo, nariz meio adunc0, metido num terno impecável. E, claro, ele não tardou a blábláblar:

— No edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!

Ante minha cara de ué?, o sujeito se apresentou:

— Prazer. Sou Emil Cioran, escritor e filósofo romeno.

O terceiro da fila tinha uma baita barba:

— Em muitas pessoas a palavra antecede o pensamento; sabem apenas o que pensam depois de terem ouvido o que dizem. — falou Gustave Le Bon, psicólogo social e sociólogo.

Ninguém precisaria me informar de que o próximo era Oscar Wide:

— Um homem que não pensa pela sua própria cabeça, pura e simplesmente não pensa.

Demorou um cadinho, mas tampouco deixei de reconhecer a última figura da fila: Marguerite Yourcenar, com seus intrigantes cabelos ralos:

— Em todas as épocas há pessoas que não pensam como as outras. Ou seja, que não pensam como os que não pensam.

Quando julguei que o desfile tinha findado, eis que Le Bon, lá de sua posição já longínqua, berrou:

— O livre pensamento não passa muitas vezes de uma crença, que nos dispensa da fadiga de pensar.

* * *

Crédito: iStock
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Julguei ter percorrido uma espécie de semicírculo naquele lugar do caralho. Minha impressão aumentou quando topei de novo com Dante e Virgílio vindo da direção oposta, caminhando devagarinho, devagarinho… tentei passar batido, pois já tava com o saco cheio de tanto aforismo, mas me ferrei: logo voltou o blábláblá (o gozado era que eu não conseguia distinguir quem falava o quê).

— O mundo é cego, e tu vens exatamente dele. Devemos temer unicamente o que pode de fato nos causar dano, e o simples temor não pode fazer mal. O amor me move: Só por ele eu falo.

— Falô, simpatias. — rosnei, na esperança de encerrar o colóquio. Vã esperança:

— Tu provarás como tem gosto de sal o pão alheio, e descer e subir a alheia escada é caminho crucial. Com aquela medida que o homem usa para medir a si mesmo, mede as suas coisas.

— Ahah…

E veio mais:

— Aquele que à inatividade se entregar deixará de si sobre a terra memória igual ao traço que o fumo risca no ar e a espuma traça na onda.

— Serve-te da prudência como chumbo para os pés que te permita avançar lentamente. Não tenhas pressa em responder “sim” ou “não”, pois se revela o mais tolo entre os tolos quem sem meditação afirma ou nega; eis que num e noutro caso cumpre ter ponderação, sendo a afoiteza causa de que muitas vezes a opinião geral conclua erroneamente com a paixão e não com o raciocínio.

Só senti que estava livre quando ouvi:

— Deixai toda a esperança, vós que entrais!

Mais ainda teve mais:

— Toda erva se conhece pela semente.

* * *

Acordei com uma puta ressaca e nenhum conhecimento extra. E, em misericórdia aos meus neurônios castigados, jurei nunca mais misturar hard news com uísque dos bons. Vida que segue.

 

Sobre Carlãozinho Lemes

Antes do jornalismo, meu sonho era ser... astronauta. Meu saudoso pai me broxou: “Pra isso, precisa seguir carreira militar”. Porém, nunca deixei de ir transmutando a sucata anárquica dos pesadelos em narrativas cambaleantes entre ficção científica, uma fantasia algo melancólica, humor insólito e a memória — essa tumba mal lacrada de maravilhas malditas. Assim, é o astronauta precocemente abortado quem proclama: rumo ao estranho e às entranhas!

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